Depois de guerrear mais horas que preciso, vem afrouxando o nó da gravata puída e desabotoando os punhos amarelos, cambaleante a caminho de casa. Mete a chave na porta e, quando pisa na cerâmica quebrada, pressiona a ponta do sapato surrado no outro calcanhar. Ato reflexo. Pés descalços, larga a maleta lotada de papéis desimportantes em cima da única cadeira, puxa do bolso o maço amassado de cigarros e segue até a pia abarrotada de esquecimentos. Abre o frigobar vazio, apoia o copo de vidro lascado, enche de gelo até a boca e derrama o whisky de segunda - até cobrir a metade dos cubos. Seu conjugado mede exatos cinco passos número 43 até a janela. Mais dois pra cada lado. Espaço suficiente para abrigar seu mísero ego de filho terceiro de mãe sofrida. Sôfrego por uma lasca de ar, segura com as mãos trêmulas o cigarro aceso e a poção mágica, e apoia os cotovelos no parapeito do mundo para observar o nada. Abraça com força o silêncio pesado, enquanto rejeita todas as máscaras que se obrigou a usar durante o dia. Agora é noite. Já passou da hora de fazer alarde. Repete a sessão cigarro-copo-parapeito até perceber o início da íntima dormência na ponta dos dedos e a aproximação dos sonhos bonitos. Satisfeito, abre o chuveiro no máximo e se afoga inteiro na água gelada, ao mesmo tempo em que cantarola baixinho a lembrança gostosa com cheiro de infância. Quando deita no colchão antigo - exausto do tudo que foi, sem nunca ter sido - imediatamente encerra seus olhos turvos. Transbordando lágrimas secas e engasgos latentes, implora - com o peito aberto e os punhos cerrados - para não amanhecer vivo. Nunca mais.
Sylvia Araujo
* Republicação
25 comentários:
Nossa, Sylvia,
Que relato mais tocante e que retrata tanta, mas tanta gente por este mundo afora.
Eu adoro sua escrita, que me faz entrar na cena, como se estivesse vendo um filme em 3D. Sua narrativa é perfeita e os motes são sempre de calar fundo.
Beijo enorme,
Ivan Bueno
blog: Empirismo Vernacular
www.eng-ivanbueno.blogspot.com
Sylvia,
a leveza (lírica?) do "ainda bem"
e o fardo (lírico?) deste "exaustão" revelam-se ambos o íntimo cotidiano de cada ser. Lembranças. Que tu cristalizas com perfeição. O diamante escrito é desta forma: há brilho, também
há suores.
Parabéns,
carinhoso abraço.
Nossa... me senti dentro do quarto dele, dentro da vida dele, dentro da alma dele... senti todo o abandono e toda a desesperança desse homem. Maravilhosa sua capacidade de descrever as cenas que cria em sua mente. Uma narrativa intensa e dolorosa, e como disse Ivan Bueno, tão verdadeira para tantas e tantas pessoas nesse mundão.
Sylvia, parabéns.
Beijos.
Descreveu um cansaço maravilhosamente bem como só você sabe fazer!
Adorei o seu comentário, Sylvia. Espero que você descanse também e me visite mais vezes. rs
Um beijo, minha querida.
"tristes de nós, que trazemos a alma vestida!"
beijo, bela!
És demais, mulher!!!
Este texto está, impecavelmente, descrevendo a história de muitos.
Lindo fim de semana para ti!!!
Que lindo! eu tava com saudade de vir aqui, às vezes me sinto exausto bem assim. :S
Beijocas querida!
Wow! Que porrada! Surpreendente, Sylvia.
Ao ler o texto, vieram-me à memórias uns versos de Eugénio de Andrade:
Cansado de ser homem durante o dia inteiro
chego à noite com os olhos rasos de água.
Posso então deitar-me ao pé do teu retrato,
entrar dentro de ti como num bosque.
É a hora de fazer milagres:
posso ressuscitar os mortos e trazê-los
a este quarto branco e despovoado,
onde entro sempre pela primeira vez,
para falarmos das grandes searas de trigo
afogadas na luz do amanhecer.
Posso prometer uma viagem ao paraíso
a quem se estender ao pé de mim,
ou deixar uma lágrima nos meus olhos
ser toda a nostalgia das areias.
Beijo
esse ritmo do seu texto. é tão tão bom. é difícil puxar o leitor assim. parabéns!
Poxa... :S
Estória [que poder ser, facilmente, HISTÓRIA] sofrida. Senti a dor dele aqui, ó... No meu coração.
Ele foi sem nunca ser. Eu tenho medo de viver, viver e não viver de fato. Tenho medo mesmo.
Um abraço, Sylvia.
Sempre gosto de te ler.
"In extremis"
Olá, Sylvia!
Texto inquietante... acho que prova o quanto também estamos sós, como a personagem descrita de forma tão desolada...
Um abraço!
Sylvia, que bela descrição! Mergulhei de cabeça no sofrimento da personagem, você é única!
Abraços!! :)
Cara, Sy, você sempre surpreende, né?
Como escreve bem!
Sabe, já me senti "meio" assim. Mas a raison d'être nos leva a continuar.
Beijos!
ruy belo referia-se a este síndrome "cigarro-copo-parapeito" (imagem belíssima, a propósito) como "o rolo frio das manhãs".
um abraço, sylvia!
Exasperado jeito da solidão encontrar suas funduras, afogado o ser em superfícies desintegradoras de si. Bela a maneira de narrar tais pungências.
Beijo,
Adoro as doces maciças de realidade que leio aqui, Sylvia!
Beijo, beijo.
ℓυηα
Certos "quartos" são sempre familiares...
belo escrito
abraço
Deu pra ver a história acontecendo na minha frente. Assisti com carinho tuas palavras, sempre tão lindamente emaranhadas.
"- exausto do tudo que foi, sem nunca ter sido - "
E quantos de nós, existem (ou resistem) por aí, sem 'serem', de fato, não é?
Você (d)escreve a vida, Sylvia. Lindo demais!
um beijo.
E pronto: descreveste uma multidão que, agora, olhando-se questiona: nossa, até quando? Texto que dessassosega...
Beijos,
Tânia
que angústia..que manero! supinpão!!
As vezes a vida cansa, pior é quando cansamos da vida.
Bjs
Insana
Acho que também cheguei a exaustão. Ser, nos ultimos dias têm me cansado. E suportar o silêncio, me pesa os ombros até agora.
Beijos meus, Querida!
Bravo, Srta. Araújo. Muito bom mesmo. Uma vida em preto-e-branco, como aqueles paletós listrados com um cheirinho de mofo no limite de incomodar (como lembrava uma infãncia, ou a casa da avó, era nostálgico e não repulsivo). O homem certamente viveu e sua vida não resume-se a esta manifestação. Ele ganhou o direito da eternidade.
Um beijo pra você.
Vou voltar mais vezes por aqui.
Sr. Eulálio
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