Foto do blog: Mario Lamoglia

segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Pretendo. Que talvez pretender seja uma forma de levar adiante a ruptura do ocaso, o susto do berro árido inexistente. A lâmpada acesa, incandescente, brilha nítida e apaga o sono. Desligo. Acendo a vela em ascensão, pavio incólume, e queimo. Um silêncio preenchido, um plano em intenção pulsa denso na fumaça abafada do incenso. Escuto. O fio tênue, transparência nua, me mantém intacta e me conecta, novelo de muitas pontas, em sincronia sutil - inspiro. Não há dedos que me despedacem o véu enquanto caminhar desconstrução descalça. No embaçado do espelho, expiro, um eu que não se basta sou eu - rua larga e deserta, povoada dos muitos invisíveis que me carregam nos braços até o topo claro da montanha alta. Chegando lá, mil horizontes. E o acerto de contas dos últimos tombos, a lei inexorável, o retorno. No fundo dos olhos e no peito, os pés - e o próximo passo, logo ali adiante.

Sylvia Araujo


sexta-feira, 26 de junho de 2015

As cores todas balançando ao vento nos varais da estrada. Serra acima, lentamente, a desenfreada pulsação abranda, impregnada do sussurro manso que ecoa sutil por entre as copas verdes. A vida pulsa, plena e viva, em seu próprio e descansado ritmo, a alma, leve, dança. Os anoitecidos olhos, intoxicados de concreto e medo, agradecem os multitons das matas densas pinceladas de delicadas flores. É bonita a umidade solene escorrendo prateada por entre as pedras lisas. É suave o amanhecimento paulatino do tão maltratado coração - os pássaros, o pasto, o gado, as incontáveis estrelas no céu, as Minas Gerais, o amor, ouro de puríssimo esplendor.
No caminho, deitado à comprida sombra de um umbuzeiro, um pequeno homem inteiro assobia cantigas baixinho, revirando nas mãos o chapéu em remendos. Não há pressa em suas longas horas mansas, não há lonjuras em seu hoje branco. Lá, o dia ignora sem dó os inúteis ponteiros e aponta, certeiro, a semente na terra. O tempo é só dela e ele, prendado, espera. Um pouco à frente, uma senhora de rosto queimado, lenço amassado e poucos dentes grita, da maltratada cerca, a meninada de pés poeirentos. Eles gargalham, meninos que são, enquanto correm atrás da mestiça galinha que, sem rumo, sacode as curtas asas como se, por um passe de mágica, pudesse voar. Galinhas não voam, mas a criançada de lá sempre me parece que sim.
Chegando à casa, olhos marejados, janelas e portas abertas, o sorriso liberto brota mansinho, o horizonte sem fim mais e mais se estende, o calor acolhedor do amor afaga, cuidadoso, as tantas cicatrizes fundas dessa dura vida, desse mundo louco, enraivecido cão. Os cheiros, os gostos, os planos, os sonhos cerzidos aos pares, os pequenos tão livres e inteiros, a música, os abraços, os passos, o coração aprumado e sereno, seguro no reconhecer-se em outros, espelho – e esse acreditar inesgotável e eterno que, na volta, sempre trago comigo palpitando no peito, de no amor e no bem jamais deixar de construir e ser.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Ela não entende

Ela me chama de bombom. Parece meio ridículo falando assim, palavra solta ao vento sem nenhum contexto e, pensando de novo agora, soa mesmo pouca coisa, sem aqueles olhos mansos pra emoldurar todo o tamanho do sentido que essa palavra, quando ela fala, tem. Mas não é pouco não, é muito, você não faz ideia.
Conheci a Nega no baile charme, aqui mesmo no Complexo, lá em cima na quadra. Tá vendo os meus olhos brilhando esse tanto? É ela aqui dentro, rapaz, só de lembrar daquele dia dá vontade de chorar. Fazia uma noite bonita, de lua quase cheia, tipo essa assim de hoje. Verão carioca escaldante pede uma gelada, né? E era sexta-feira. Saí um pouco pra relaxar com a rapaziada depois de um dia de cão e dei com ela lá, quase deusa, flutuando no meio da multidão. Meu coração parou, faltou o ar, tudo rodou. No mesmo minuto eu disse pra mim mesmo: é ela! A partir dali, nunca mais soltei o avião, e lá se vão mais de dez anos.   
Ela me chama de bombom e ontem nós discutimos feio. Ela disse que eu não ia, eu bati o pé que ia. Aí ela chorou e falou que tinha medo. Eu respondi que também tenho, oras, desde que me entendo por gente, mas que, ainda assim, estaria lá. Ela gritou que eu não a amava, que era um irresponsável, baderneiro, que jamais teria um filho com alguém sem rumo feito eu.  Aí eu não aguentei e esbravejei que era uma questão de honra, porra! Pelos meus pais, meus avós - e pelos dela também! -, pelos filhos que queria ter e o futuro que sonhava em deixar pra eles, pela vida livre que sempre desejei levar e nunca pude, por essa minha silenciosa e sedenta alma negra aprisionada à margem de tudo, sempre, e pela dela também, que nem fazia ideia do quanto era oprimida, marginalizada e coagida todo santo dia. Antes de bater a porta, fiz a burrice de chamar a Nega de burra. Ela se emputeceu, claro, com toda razão. Ah, se arrependimento matasse...
Eu só queria que ela entendesse, mas ela não entende. Você sabe o que é passar a manhã de domingo inteira, anos e anos a fio, catando xepa na feira, pra ter o que comer durante a semana? Você sabe o que é andar por aí na rua e ver o medo estampado nos olhos das pessoas quando cruzam com os seus? Eles atravessam a rua; elas apertam as bolsas e o passo e abraçam os filhos quando me vêem. Isso é cruel, cara! Já pensei, moleque, em arrancar uma bolsa qualquer de madame, sair correndo e despejar tudo no lixão, sem nem abrir. Só pra justificar o medo e aquilo fazer algum sentido, sei lá, mas nunca tive coragem. Você sabe o que é ter que passar por isso toda vez que pisa o asfalto, só por causa da cor da sua pele? Se sentir diminuído, humilhado, mesmo se estiver com o salário inteiro no bolso? Eu já amaldiçoei esse amarronzado aqui muitas e muitas vezes, mas agora cansei. É justo, não é?
Tô cansado de perder amigos, de sempre ter que consolar quem perdeu alguém. Só essa semana foi tiro em trabalhador, em criança, em avó, tá cheio de militar aqui dentro. Eu tô é muito puto com essas rajadas pelo céu todos os dias, com as correrias inesperadas, com essa sufocante falta de paz, de não poder dormir à noite só porque sou preto e pobre. Eu sou preto e pobre. Não posso esconder minha pele, meu cabelo, não posso fingir ser quem eu não sou, entende? Você sabe o que é viver assim? Ela sabe, a Nega, mas não consegue entender a minha revolta. Ela acha que é assim mesmo, que deus dá o fardo certo e justo pra cada um, que nada na favela vai mudar com manifestação contra a violência aqui ou acolá, que eu tô é fazendo arruaça sem sentido, ao invés de deitar e descansar - todos os dias, às cinco tô de pé. Mas eu não acho nada disso, não. Acredito, de verdade, que a gente pode mudar muita coisa nesse mundo, sim, se tiver fé e não desistir no meio do caminho. Mesmo debaixo de bala eu tinha que estar lá. Mas ela não entende.

Sylvia Araujo

terça-feira, 10 de fevereiro de 2015

As importâncias todas esparramadas, lado a lado, sobre a gasta mesa. O estampido oco da queda brusca dos absolutos brutos - esparsas nuvens. Valores em xeque; partidas as meias histórias; sólidasbrilhantes aquelas que nunca na vida deixarão de ser e são. O que respira, hoje, é o que semeia e brota, suave tempo - adoçabranda tua corredeira louca, coração, quieto trabalha. E, por hoje só, sorri.

Sylvia Araujo

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Engarrafado

Subo os degraus do ônibus com dez reais na mão. Sou a primeira a entrar e dou de cara com uma pequena e irritada fila à minha frente. Três passageiros do ponto anterior ainda aguardam o troco, impacientes. O motorista sua em bicas, sentado ao lado do motor fervendo, mangas de camisa e pernas de calças, feitas de um tecido barato e sintético, arregaçadas até as juntas cansadas. O sol de janeiro tem castigado e, apesar das promessas, o coletivo não tem ar condicionado, como em nenhuma linha dessa companhia, que atravessa inteira a esquecida zona norte da cidade. Aparentando pouco mais de 50 anos, vastas rugas penduradas pelo duro rosto retesado, diariamente dirige um carro com mais de trinta passageiros, aperta um botão que abre e fecha portas dianteiras e traseiras, outro que libera a roleta, dá trocos e informações de itinerários, regula a elevatória para cadeiras de rodas, faz um esforço medonho  para se manter atento ao engarrafamento insano das quase sete, aos sinais de trânsito, ao barulho insistente da cigarra a cada 300 metros, além de carregar na cabeça e no peito suas dores pessoais e intransferíveis - todos temos nossos próprios fardos, afinal, por mais que queiramos não dá pra fugir. Na minha vez de passar a roleta ele explode, as veias do grosso pescoço vermelho saltadas em alerta: "só fico mais essa semana aqui! Não aguento mais dar trocos e dirigir ao mesmo tempo! A vontade que dá é de largar o carro na rua e ir embora!" Eu lhe dou razão, todas do mundo. Digo que é desumano, que ele está certo, que R$ 3,40 é um roubo para a bosta de serviço que eles prestam, que o cartel das companhias de ônibus quer mais e mais lucros em cima da saúde física e mental de quem precisa do emprego, que demitir trocadores e sobrecarregar motoristas é realmente cruel e não tá certo, e tá tudo muito, muito errado mesmo, oras! Ele respira um pouco mais aliviado, parece, passa a pesada marcha com as mãos calosas e segue, determinado, o denso fluxo. Já sentada no banco colado à janela, observo distraída as vidas que passam lá fora e a minha respiração entrecorta. Não é mais tão difícil entender porque alguns motoristas do único ônibus que me serve para chegar ao trabalho passam direto do ponto cheio toda manhã, deixando alguns furiosos passageiros apressados e atrasados a ver navios. Decidi, então, andar alguns metros pra trás e esticar o braço de um ponto mais vazio. Eles sempre param lá.

Sylvia Araujo