Foto do blog: Mario Lamoglia

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Vento

A encosta quase verde neon, o cheiro do vento morno dos dias, o estalar da madeira no fogo, as incontáveis estrelas no céu. Os gatos esparramados na sala, os cães bebendo água no açude, as crianças felizes aos pares, o pique pelas portas abertas. As pipas lá no alto do céu, o tilintar do mensageiro dos ventos, o cheiro de doce do tacho, as risadas na mesa comprida. O vinho seco-suave, a poesia dos hojes em branco, os erros, fracassos, lições. Os abraços, os sorrisos, os laços, reconhecidos os mormaços, os olhos fechar. Oferecer as desculpas, o beijo, a flor. E o amor. Seleto, raro, preciso - por isso inteiro e em paz. 

Sylvia Araujo



terça-feira, 20 de maio de 2014

Um quê de espinho, um cisco

Está um dia um tanto quente hoje, não? Muito, muito quente mesmo, bem mais quente que o previsto. Abafado à beça o pouco ar; mal respiro, arde, dói - bem aqui, ó. Uma fisgada funda, às vezes - ai! -, viu só? Que coisa incômoda isso, um quê de espinho, ponta fina quebrada, uma lasca, um rasgo, um cisco, cruz credo. Ontem teve susto de granizo, você soube? Ou foi anteontem? As horas se confundem nesse lugar, os minutos se embaralham, nos ponteiros, ímã, é tudo agora aqui: hoje, ontem, anteontem, seja lá qual for o quando, só sei que teve. Foi em São Paulo, eu acho, ou coisa parecida - no fundo, no fundo, perto ou longe, tanto faz o onde, quilômetros são só rasas fugas, enfim, deixa isso tudo pra lá, melhor assim. Descolou do teto essa coisa toda, despencou do céu, sem parcimônia alguma, uma puta surpresa de gelo, pois é. É o imprevisível dos dias, esses sonhos todos, sempre prestes a derreter no próximo segundo, um deleite desesperançado, percebe? Bonito de ver, até, mas eu não vi, nem senti, porque já estava aqui. Não, eu ainda não me movi, espera, se acalma, que pressa é essa? A natureza é sempre um esplendoroso espetáculo, um circo sem lona, um palco escancarado às incontáveis avarias da vida - é pra sentir. Ah, a vida! Dá só uma olhada, escuta esse barulho todo dentro do peito, presta atenção, observa. Sente esses pingos no rosto, lambe esse sal que, abusado, te cola nos cantos dos lábios e me diz: é ou não é tudo isso? Mais ainda, eu sei: ela é dona de infinitos segredos, precisamos, nós todos, de algum tempo sem dedos. E de certas chaves também, me parece. Isso não é nada engraçado, não sei porque você ri. Está mesmo um dia quente ou eu é que ando suando demais? Olha só essas marcas escuras na roupa, quanta umidade anti-estética, meu deus, quanta nódoa - vê aqui? E aqui também, embaixo dos braços, entre as pernas, esses pelos bizarros, esse rio tão quente que esvai entre os fios, um horror, um horror! Meus pés estão escorregando, reparou? Os dedos colados melando, que nojo. Essa pretidão derretida escorrendo pros lados, essa poça esquisita aqui embaixo e esse mar aí, todo ele bem aí - ê, marzão! Melhor ficar descalço logo, enfiar até o tornozelo nessa areia fina e morna e ir. Faz tempo que ando obcecado com esse próximo passo, me falta é coragem, confesso. Que suplício, que martírio esse ter sempre que ir além, meu deus! O gozado é que o sol está quase todo encoberto, essas tantas nuvens aí, vê só - leões, dromedários, bicicletas, medos, uma porrada de medos, e eu aqui suando. É uma tensão estranha, sabe? Repara como os meus ombros tremem, as minhas mãos tremem, os meus joelhos batem, um no outro um no outro, que sensação desconfortável essa, pois é. Eu sei, eu sei, mas não quero me arrastar, entende? Quando eu sair daqui vou galopar! É. Me dá até vontade de rir só de imaginar, escuta só: vou tirar os chinelos, bem devagar, e vou chegar ali, bem na pontinha, tá vendo? Mas bem na pontinha mesmo, só apoiando o calcanhar. Um balanço de leve e pronto!, meus pés já vão estar na areia, simples assim. Aí, eu vou correr muito, muito rápido, com os braços bem abertos e os cabelos voando. E quando eu chegar lá, bem pertinho, quando aquela água verdeazul encostar seu frio na ponta dos meus dedos e abraçar os meus calos, eu vou dar três pulos grandes e, de olhos bem abertos, vou me jogar. É sério! Mas calma, calma que eu ainda estou aqui, racionalmente, calculando tudo. Tem que ser um daqueles passos perfeitos que a gente dá na vida, sabe? Os pés, a areia, a água, o salto - ah, o mar, o imenso mar! Só um pouco mais de paciência, um pouquinho só, tem dó, que, por enquanto, estou daqui olhando, filmando tudo e surfando alto, muito alto, bem na crista desse filho da puta - ah, esse maldito medo!

Sylvia Araujo

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Sopro dos pássaros

Com a lâmina fria e gasta enterrada bem fundo no peito, um suspiro. Dois, exaustos, e já me foge o ar - rascante, abafado, úmido. Seco e úmido. Seco de dar dó. O medo alarmante do barco tão frágil virar já sumiu no horizontehoje, desapareceu lentamente à turvas vistas, desde aquele anoitecer nublado irrepetível. O medo é monstro aborrecido, é âncora. Ninguém se lembra porque ninguém viu aquele tanto azul se esparramando, entregue, pelo chão gelado. Mas eu sentia que aquelas contas todas, aquele tanto mar, aquela bruta urgência era só vazio ensurdecedor, cheio de qualquer coisa pouca que conviesse agora. Eu sentia, cega.

Atiro pedrinhas redondasmiúdas no espelho do rio, os pés descalços sujos, o peito em luto, os olhos ardendo, enquanto o vento vem - insistente mansidão-frescor - me falar baixinho do amor. O vento sabe do amor. E a raiz, o broto, o sol que esquenta, a areia fina que escorre pedaços por entre tantos dedos, até virar inteira outra vez, incansável. É preciso nunca desistir de acreditar que ainda exista a beleza - a todo tempo os pássaros sopram. E a verdade, o bem sem amém, o abraço inteiro, o riso sem medo de ser apenas riso e nada além. É urgente acreditar para não sucumbir. Por isso aquelas tantas sementes guardadas no fundo da gaveta escura do armário sem uso, percebe? Porque sempre chega a hora, a vida já me explicou, em que é preciso preparar de novo a terra, escolher os melhores adubos e regar com calma e carinho um novo e mais bonito amanhã.

Sylvia Araujo