Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 20 de maio de 2014

Um quê de espinho, um cisco

Está um dia um tanto quente hoje, não? Muito, muito quente mesmo, bem mais quente que o previsto. Abafado à beça o pouco ar; mal respiro, arde, dói - bem aqui, ó. Uma fisgada funda, às vezes - ai! -, viu só? Que coisa incômoda isso, um quê de espinho, ponta fina quebrada, uma lasca, um rasgo, um cisco, cruz credo. Ontem teve susto de granizo, você soube? Ou foi anteontem? As horas se confundem nesse lugar, os minutos se embaralham, nos ponteiros, ímã, é tudo agora aqui: hoje, ontem, anteontem, seja lá qual for o quando, só sei que teve. Foi em São Paulo, eu acho, ou coisa parecida - no fundo, no fundo, perto ou longe, tanto faz o onde, quilômetros são só rasas fugas, enfim, deixa isso tudo pra lá, melhor assim. Descolou do teto essa coisa toda, despencou do céu, sem parcimônia alguma, uma puta surpresa de gelo, pois é. É o imprevisível dos dias, esses sonhos todos, sempre prestes a derreter no próximo segundo, um deleite desesperançado, percebe? Bonito de ver, até, mas eu não vi, nem senti, porque já estava aqui. Não, eu ainda não me movi, espera, se acalma, que pressa é essa? A natureza é sempre um esplendoroso espetáculo, um circo sem lona, um palco escancarado às incontáveis avarias da vida - é pra sentir. Ah, a vida! Dá só uma olhada, escuta esse barulho todo dentro do peito, presta atenção, observa. Sente esses pingos no rosto, lambe esse sal que, abusado, te cola nos cantos dos lábios e me diz: é ou não é tudo isso? Mais ainda, eu sei: ela é dona de infinitos segredos, precisamos, nós todos, de algum tempo sem dedos. E de certas chaves também, me parece. Isso não é nada engraçado, não sei porque você ri. Está mesmo um dia quente ou eu é que ando suando demais? Olha só essas marcas escuras na roupa, quanta umidade anti-estética, meu deus, quanta nódoa - vê aqui? E aqui também, embaixo dos braços, entre as pernas, esses pelos bizarros, esse rio tão quente que esvai entre os fios, um horror, um horror! Meus pés estão escorregando, reparou? Os dedos colados melando, que nojo. Essa pretidão derretida escorrendo pros lados, essa poça esquisita aqui embaixo e esse mar aí, todo ele bem aí - ê, marzão! Melhor ficar descalço logo, enfiar até o tornozelo nessa areia fina e morna e ir. Faz tempo que ando obcecado com esse próximo passo, me falta é coragem, confesso. Que suplício, que martírio esse ter sempre que ir além, meu deus! O gozado é que o sol está quase todo encoberto, essas tantas nuvens aí, vê só - leões, dromedários, bicicletas, medos, uma porrada de medos, e eu aqui suando. É uma tensão estranha, sabe? Repara como os meus ombros tremem, as minhas mãos tremem, os meus joelhos batem, um no outro um no outro, que sensação desconfortável essa, pois é. Eu sei, eu sei, mas não quero me arrastar, entende? Quando eu sair daqui vou galopar! É. Me dá até vontade de rir só de imaginar, escuta só: vou tirar os chinelos, bem devagar, e vou chegar ali, bem na pontinha, tá vendo? Mas bem na pontinha mesmo, só apoiando o calcanhar. Um balanço de leve e pronto!, meus pés já vão estar na areia, simples assim. Aí, eu vou correr muito, muito rápido, com os braços bem abertos e os cabelos voando. E quando eu chegar lá, bem pertinho, quando aquela água verdeazul encostar seu frio na ponta dos meus dedos e abraçar os meus calos, eu vou dar três pulos grandes e, de olhos bem abertos, vou me jogar. É sério! Mas calma, calma que eu ainda estou aqui, racionalmente, calculando tudo. Tem que ser um daqueles passos perfeitos que a gente dá na vida, sabe? Os pés, a areia, a água, o salto - ah, o mar, o imenso mar! Só um pouco mais de paciência, um pouquinho só, tem dó, que, por enquanto, estou daqui olhando, filmando tudo e surfando alto, muito alto, bem na crista desse filho da puta - ah, esse maldito medo!

Sylvia Araujo

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