Foto do blog: Mario Lamoglia

segunda-feira, 10 de outubro de 2016

A relva crispada e úmida - sob os pequenos indecisos pés descalços - de um vivo verde amarelecido adocicado e pausado, transfere, calma indiscutível, uma sabedoria mansa e fresca de insistente grama crescendo altiva e matemática. Feito pequenos choques pernas magras acima, como quem sussurra, quase em grávido silêncio, expõe inequívoca a língua inexprimível e exata das ruivas formigas, dos grilos, dos vermes, das abelhas, corujas, leoas, das esperanças todas eriçadas invencíveis, douradas e esquentadas de sol. Além dos sentidos, ela ouve sem sequer ouvir. Os doces hipnóticos olhos observam, fixos plenos, uma retorcida folha alaranjada quase marrom que se desprende, como num delicado desatar de mãos, do alto da árvore sonolenta e dança, femininartística, por entre as luzes e sombras do amplo espaço, durante um esticado completo minuto - ele parece intencionar cessar de escorrer para também observá-la inteira, grandíssima bocarra escancarada em inchada admiração. Então, a suave folha pousa quase sem tocar a ácida terra enquanto, vivamorna, a terra - dona inconteste de tudo o que um dia foi - a abraça, e os brilhantes olhos e o entregue tempo, de imediato, em despedida ritualística e solene, desfocam.

O dia lilás - nu enviesado, aquecido por pinceladas espaçadas em vários tons de vermelho - se esvai em desmaio lento, vazio e sereno no horizonte estático, sem reverências maiores às ideias mesmas cansadas e aflitas que vagueiam, labirínticas, nos raciocínios vai-e-vem confusos e apocalípticos dos cegos homens partidos. Ele sabe, íntimo último das coisas que são e dos inesgotáveis tensos fios que sustentam a vida, em sua transparência cósmica, que tudo o que quiser com força alcança, no devido tempo e no constante espaço em broto além das aparências oásis, como se nada-nada tivesse de fato um fim, como não o têm, se se dedicar a apreender de maneira ampla e integral tudo o que é real. O dia, esse sempre o mesmo apesar de incansavelmente outro, gordo inteiro como em todos os inadiáveis e indecifráveis dias, não se pensa, não se confunde ou altera; ele abriga e não distingue segundos, escolhas, sentidos que a cada um pertencem, a mais ninguém, tampouco tortuosos passos e outros momentos aquém dos seus movimentos translúcidos, tempos indecisos, olhares além ou altos inescaláveis muros. Ele reflete; olha não julga, tudo guarda e certeiro usa sem nenhum abuso quando, no exato perfeito instante onde cabe, não sem alguma qualquer pequena dor, meticuloso atento reverbera, acima do denso chão e abaixo do etéreo céu e, insistente dedicado, constrói tudo aquilo com o que em conjunto vibra, enquanto ajusta as velas para ir - lento e sem nenhuma pressa - de encontro ao mar.

Vagando sem direção em impalpável fio de pensamento doído, Maria pensa - no fundo, quase sem nada pensar - no acaso sincrônico, desencontro certo, no gigante amanhecido amor tão distante e tão perto: porque irremediavelmente eterno; porque sempre bem fundo bem dentro, mesmo se ausente; porque inextrincável em jogos quaisquer de palavras, quais sejam elas. Quase inerte - a respiração perene ritmada e funda alteando em pequenos espasmos o frágil peito; o cotovelo pontiagudo apoiado, sem força ou peso, no rígido braço de ferro do banco azulado cheirando à ferrugem e mistura de tinta gasta - sustenta, em seriedade divertidamente astuta, a alegria urgente e resplandecente do orvalho quase esbranquiçado, estanque, que recobre os galhos secos no despedir alvoroçado do desprendido dia. Maria dói sem doer, escorrendo sentada, sozinha e quieta ali naquele ermo lugar. E se alegra, vazia, quando pensa coisa alguma e tudo observa sem qualquer fatia de futuro ansiar. Sem saber exatamente o quê e de quê, espera sem esperar e, desajeitada entregue, sorri. Sabe, não se sabe como, de um plano escrito à mãos vazias - sua sina -, de um lugar cativo entre as montanhas mansas - coloridas nos mais variados tons de vida, de onde a música não se cansa nunca de ritmada e amorosa escoar - resguardado e certo por qualquer coisa que não se pode tocar e, ainda assim, inexplicável simplesmente existe e é.

Faz frio, um frio fino e elegante, no limite estendido do morno se se olhar cauteloso de dentro pra fora. É que as coisas carregam em si vaporosa essência que por inúmeras vezes não se pode enxergar ou explicitamente arguir: porque nossa e muito íntima, porque centelha eterna, algo intocável, um quê de insondável inacessível reflexo. Sentada no descascado banco de ferro meio azul meio ferrugem, a pele umedecendo aos poucos ao agudo toque do macio orvalho, olhando perplexa a alaranjada folha caída, abraçadengolida pela úmida escura terra, os pés descalços acarinhando a relva tão viva tão viva tão viva, o coração a ponto de, aos pulos, sair pela boca, Maria atônita pensa, sem quase nada pensar: e isso, tamanho apaixonante imensurável mistério, é tudo-tudo o que há.

Sylvia Araujo