Foto do blog: Mario Lamoglia

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Neblina


Não, você não faz ideia do quanto é grande, do quanto eu sinto, do quanto eu quero e espero de nós. As tuas mãos nos meus cabelos, as tuas curvas entre os meus dedos, teu sol inteiro violando ávido os meus sentidos - um a um. Falta teu ar nos meus dias, amor. Me falta você. Dói feito punhal cravado no peito, esse torto amor reticente em tanta inteireza de entrega. Eu te amo louco, desvairado. E ainda assim, doído, parto. Refaço as malas que nem desfiz, e parto. Respiração suspensa, espero sempre que você se vire, que você me olhe, que você me peça que fique e te ame, desvairadamente te ame até o amanhecer. Mas você soberba e mulher segura, retoca com calma a máscara dos seus dias mornos e segue - intocável estátua de cera derretida dentro de mim. Hoje carrego a tua alma bonita em um porta retratos debaixo do braço. Tua imagem sorrindo naquele dia claro de sol é tudo o que resta do resto de nós. Cada vez que nos desatamos, envoltos em densa neblina, você leva contigo um pedaço enorme de mim. E nesse eterno despedir, anoiteço. Sozinho, estilhaçado, perdido pereço. Ando mil pedaços faltando, amor. Ando você inteira no peito. Ando sorriso amargo, coração cansado. Ando só - ando muito só com você aqui. Chove em barulho alto, folhas de outono voando, soluço engasgado. As gotas translúcidas batendo incessantes na janela dos olhos, são feito os poemas que te jorram em rios - madrugadas de lua. E meus braços se esticam no pranto da noite pedindo implorando teu colo, teus dedos. E com eles eu fico - horas e horas a fio - entregue e exausto dos nossos tantos nãos. Ninando meus beijos, ninando teu cheiro, adormeço abraçado ao seu travesseiro. E cantarolo baixinho aquela nossa canção, que por tanto tempo se fez ninho e hoje - nesse quarto opressor e vazio - é só, e somente pó, solidão.


Sylvia Araujo



PS: Do comentário lindíssimo do AC, do Interioridades, surgiu o final desse texto. O Link em nuvem fofa, bem aí em cima. 

domingo, 27 de junho de 2010

Indistinguível


Inerte. As mãos negras e disformes boiando flácidas em sangue frio. Sentia um fiapo de vida latejar no pulso esquerdo partido, e rosnava por dentro. Não era dor, mas ódio o fio tênue que mantinha seu coração cansado batucando frenético dentro do peito. Noite fria em beco escuro não é tempo de ficar estirado no chão feito dejeto. Ainda assim, lá estava ele abraçado ao meio fio, aos restos de madrugada pútrida e às ratazanas famintas - indistinguíveis. Sentia no rosto um constante fisgar, e do olhar em horizonte fugia apenas um vislumbrar leitoso de imagens retorcidas. Ao fundo, um poste apagava e acendia - ritmado. Ou seria uma lanterna? Ou seus tantos desmaiares? Tentou mover as pernas e não conseguiu. Em pânico, imaginou o revirar do pescoço, mas eram apenas os globos girando nas órbitas e a palavra queimando feito incêndio na garganta. Nem um som se ouvia, além das gotas gordas que escorriam dos seus olhos vítreos e pingavam quentes no chão de concreto. Chovia através das pálbebras inchadas, um gosto salgado fazendo arder os cortes profundos nos lábios. E ele ali, inerte, implorando emudecido ajuda ou morte. Como num filme, Margareth lhe saltou à frente em batom vermelho e seios fartos. Dançava linda, enevoada pela fumaça da cigarrilha ao som de um blues qualquer - olhos fechados. Ela sempre fazia isso enquanto ele apertava o espartilho ou afivelava o salto. E lhe enxugava as lágrimas com lenço de seda, quando ser mulher aprisionada em corpo de homem virava fardo pesado demais e lhe anoitecia. Margareth era feliz com o que se transformara e talvez isso a tenha salvado da solidão. Enquanto ele, mazela pura, expurgava sozinho naquela sarjeta imunda, o veneno amargo que o consumia. Já não sofria. Com um beijo doce da única e fiel amiga, evaporou enfim em uma paz lilás.

Sylvia Araujo




PS: Tomei emprestado o lilás da evaporação bonita do Marcelo Novaes, no incrível Prosas Poéticas. O link logo aí em cima, de mãos dadas com a paz.

Conversa com Marcelo

Marcelo Novaes me concedeu o prazer de mergulhar profundo dentro de mim, numa entrevista maravilhosamente instigante e deliciosa. Estou lá no seu Bloco de Notas, respondendo às suas perguntas sensíveis e perspicazes com toda verdade e integridade que me moram. Se quiser me conhecer um pouquinho mais, dê um pulo lá. Te espero com o coração aberto!

Beijoca

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Borrão


Nossas mãos se abraçaram. Apertado, feito menino com medo de escuro - não me envergonho. Aqueles cabelos compridos - fatia de franja beijando a bochecha com displicência - acalmavam meus nervos. Nunca na vida provei boca tão doce, mesmo quando cuspia impropérios. Ela era eloquente. E dia claro - soluço raro nas minhas noites insones. Seu olhar me entorpecia inteiro quando vinha lânguido, cheio de braços a me engolir. E o meu olhar suspirava por ela. Todas as manhãs eu derretia. Tinha dias acordava espinhos, e mesmo enraivecida cheirava a rosas - que tipo de magia ou encantamento tinha emanando pelos poros ou vertendo por entre as pernas, eu não sei. Só sei que eu era dela. Inteiro dela, enquanto me quisesse ao meio. Acontece que Marina era tanto - e tão tudo de uma vez só - que metade era muito pouco pr´aliança de eternidade. E derramamos lágrimas no fazer das malas, e dobramos juntos as meias brancas, e enchemos a cara de vinho tinto antes de fumar, cúmplices e esvaziados, aquele último baseado. No aeroporto - seu all star vermelho roçando de leve as minhas havaianas sujas, suas mãos suadas mastigando os meus dedos frios, eu indo pra perto e ela pra longe de mim - eu tive a absoluta certeza de todas as nossas incertezas. E desse momento em diante, a ausência dela choveu tanto dentro de mim, que o meu coração borrou.

Sylvia Araujo




PS: Poeta de mão cheia - das pequenezas que se sabem inteiras - Geraldo Barros, do lindíssimo Sem Catraca, empresta seu verso-chuva às minhas letras. O link, como sempre, borboleteando lá em cima.

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Dos espantos


Na hora exata em que seus olhos vivos se preparam para se pôr - nem um minuto a mais a escorrer pela noite - Maria sorri em lábios de cereja madura, no alto de um galho esparramado de arbusto. Dançam serelepes - embonecadas em vestido de chita - as lembranças de um hoje feliz, embalado pra sonho em folhas de outono. Sonho de menina em travesseiro fofo de penas, é coisa que enche o peito e faz doer de ausência coração de adulto - por isso ela não usa salto. Não é que não queira ter abraçados os pés descalços com as tiras e as fivelas da estação. É que não vê mesmo sentido em crescer mais cinco centímetros que seja, além daqueles que forçosamente fazem sua pureza escorrer, cascateando pelas mãos. Maria "é adivinhação de criança, quase ciranda incandescida por uma estrela".
Faz tempo que aboliu os espelhos dos dias. Passou a medir sua meninice pela quantidade de laços de fita que cabem alvoroçados no meio dos babados fartos - encompridados de propósito até as canelas finas. Pra evitar que suas pernas esguias se descompassem e esqueçam da música que escoa do tempo, todas as manhãs ela pega pela mão as palavras, e as leva pra dançar. Assopra com força ao vento forte do inverno todos os porquês que carrega no estômago - é essa sua fome de espantos que faz com que todos os sentidos lhe dêem boa noite, todas as noites escuras sem lua. Ela não vive sem eles. Rodeados de cheiros, sons, cores, gostos e minutos felpudos, seus dias nada mais são do que presentes enormes e surpreendentes, embrulhados com o papel mais brilhante de todos, à sua espera em cada amanhecer na beirada da cama. Repletos de matizes e belezas, cheinhos de vida e alegria, eles se entregam inteiros a ela. Maria, bonita que só, carrega bem dentro um coração de criança. E é só por isso que ela sonha tão pequeno-enorme assim.

Sylvia Araujo




PS: Com um beijo na Luciana Marinho, do Máquina Lírica, que me soprou a ciranda incandescida, dando vida e poesia à minha Maria. O link dança no meio do texto, de mãos dadas com as outras letras bailarinas.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

(In)conjugável


As palavras me cicatrizam, instantâneas feito ópio. Ou talvez uma dose cavalar de morfina, que amortece displicente os lobos cerebrais - certeira como a lágrima que se arremessa impávida do alto da face, pouco antes do inevitável endurecer do coração. Não existem meios de me desnudar dos medos e anseios, sem permitir que frases inteiras-atropeladas me irrompam libertas do útero em chamas. Mesmo que eu as mantenha militarmente algemadas aos sentimentos mais inúteis, elas me jorram altivas e incontestes. Não há como manter o respirar cadenciado sem que a maldita tela, de algum maldito computador, seja lentamente preenchida pelas dores e os amores que me invadem e escorrem incessantes, todos os dias.
Escrever é minha libertação. E a mais sufocante das clausuras. Minha incoerência e militância. É ao mundo que esbravejo febril os gritos lancinantes, desesperados e insanos da fera enjaulada em seu próprio peito. É ao outro que suplico cuidado com o que me vaza e esvazia - porque isso é tudo o que me resta. É lá - bem lá no meio das tantas folhas soltas e desconexas que me revelam - que sucumbem exaustos os poucos pedaços mais preciosos de mim. Os que me são e os que me ausentam. E ainda aqueles que - não sendo nem um, nem outro - vivem de almejar uma identidade, qualquer que seja ela; como um vulto que aguarda ansioso o breve mas caloroso aceno, sentado imóvel diante da janela de um trem que parte sem olhar pra trás. E assim, como quem se resigna diante de um mal irremediável, segura constato que é, sim, no contorno delicado e dolorido dessas letras latejantes que me encontro - feito rosto que reconhece as suas próprias marcas em olhares alheios. E que, neste materno aconchego de ninho aquecido pelos verbos mais inconjugáveis - invariavelmente - me perco. Com os poros famintos e o peito escancarado.
Sempre sorrindo e sangrando.
Di  la   cer   ando.

Sylvia Araujo




PS: Com um beijo enorme na careca brilhante do Sara-Mago das palavras. Ficamos aqui abraçados com as suas deslumbrantes letras e com a saudade apertada dos muitos mundos que ainda estavam por vir. Ainda bem que palavra alada é imortal. 

"Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia."
José Saramago

terça-feira, 15 de junho de 2010

Pontual*


E dentre maus tratos e destratos, fez-se um silêncio cortês. Brotou da estrutura doce do teu fel um mantra de paz. Talvez nem me queira mais, e eu ainda aqui, desarmando meu peito-armadilha fissurado em emboscadas.
Não é de hoje que me corrompe as idéias o teu caso obstinado com o vento. Sempre soube que tuas asas flanam onde meus braços não alcançam. Sequer tenho braços, quando teu calor aquece meu frio. Sequer tenho a mim.
Com ares de dama da noite, que só presenteia com sua beleza e suspiro em hora marcada, me frequenta quando convém. E o pior de tudo é que me contenta o sutil detalhe do minúsculo tempo que me oferta já partindo.
Você parte sempre.
E me reparte - poema insosso.

Sylvia Araujo



* Texto republicado

PS: Essa novela do computador pifado já está se estendendo mais tempo do que eu gostaria de tolerar, mas como não tem jeito, sempre que posso posto novidades, vez ou outra republico alguma coisa e quando dá, dou uma voada pelas letras de vocês. Rezem-orem-peçam-qualquercoisa-pelamordedeus, pra que esse nó desate logo e eu possa, feliz, voltar a escrever. Porque do ponto que eu tô adiante, já deixa de latejar pra começar a doer.
Beijocas enormes

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Technics


Você não tem ideia de quanta coisa eu superei, abdiquei, passei por cima, fingi que não vi. Dizem que o amor é assim: a gente abre mão de tudo pra tentar evitar o inevitável. Eu já nem me importava mais com as suas calcinhas penduradas na torneira do box, te juro. Nem com os absorventes usados enrolados na beira da pia, ou a escova de cabelo entupida de fios compridos e dourados. Achava até bonito - acredita? - aquele sol brilhando pra mim por entre as cerdas pretas e finas, todos os dias pela manhã. As camisetas surradas e as cuecas sem elástico que eu adorava usar - antes de você liquidá-las - já nem me lembrava mais. E a caixa de ferro do whisky 12 anos, que abrigava a minha coleção de botões oficiais? Tudo bem que tenham virado depósito de esmaltes multicoloridos e apetrechos de manicure que você nunca usou - minhas poucas coisas ficam bem em qualquer lugar. Não me incomodava nem um pouco que todos os cabides do meu armário estivessem ocupados pelos seus vestidos. De verdade. Até consegui compreender que eles precisavam mesmo de mais espaço, e as minhas calças gastas não. Esvaziei as prateleiras dos meus enfadonhos livros de Economia para que os seus sonetos pudessem respirar melhor, e deixei de lado os meus planos - todos eles - pra satisfazer os teus caprichos. Alisei com progressiva os teus cachos largos, te levei na primavera pra Veneza e te enchi de sapatos de toda sorte - apesar de você só ter dois pés, como qualquer outro mortal. Estava mesmo tudo bem, Cecília, até que você ultrapassou o inultrapassável. Eu sempre te disse que você podia tudo, e que eu te amava com todas as minhas forças - talvez tenha sido esse o meu maior erro - mas que nunca, jamais encostasse na minha vitrola. E você, num dos seus ataques histéricos de menina mimada que não ganhou de presente a boneca do comercial - olhando desafiadora no fundo dos meus olhos incrédulos - enfiou o dedão imundo na ponta delicada daquela agulha. Por isso, minha querida, não há mais o que lamentar: engula esse choro pobre, pegue as tuas coisas vazias e vá se envenenar com cds baratos em outro lugar. Porque o meu Baby 1983, aqui, nessa Technics original, você não escuta nunca mais.

Sylvia Araujo

domingo, 6 de junho de 2010

A.Pimenta.do

Aproveitando o momento notebook furtado (ó dia, ó céus, ó azar!), andei vagando por aí - blog aqui, blog ali, algumas visitas aos queridos, umas poucas boas novas, outras já amores antigos - e dei de cara com o Henrique Pimenta, lá do Bar do Bardo. Inevitável não me apaixonar pelos sonetos atualíssimos, cheios de humor e malemolência e pela poesia ultra-desafiadora do sujeito. Eu, de lá da minha mesa de canto, caneca de vinho numa mão, bolinho de bacalhau na outra, soprei pra cá pra perto a maravilhosa leveza e irreverência dO Cara. Deliciem-se, que é coisa boa - garanto.


Técnica PN sem L

"Eu acordei num lugar muito estranho.
A cabeça estava por explodir.
Lembro-me de que saíra sozinho.
Bebidas, desejos, coisa e tal e,
depois, fomos passear pela rua.
Já longe do roteiro conhecido,
que estávamos bêbados demais, sem
medo, sem medo, sem medo, sem medo.
Resolvemos que seria melhor
dormirmos ali naquele chão. Sim,
loucura. Percebi que estava nu.
Percebi que havia uma cama sob.
Senti sobre o meu braço uma pressão,
cabeça, cabelos, olor
de sândalo
um
i n c e n s o . . .

mergulhei meditei-lhe nos desenhos produzidos pela
fumaça como que uma série de signos esotéricos
concentrei no mantra que me fora fornecido
secretamente e quase que
gratuitamente
por um site indiano desenvolvimento da intuição
mas no andar de cima
(ops eu estou no meu apartamento)
zeca pagodinho reinava absoluto
e eu não poderia ir de encontro ao absoluto
voltando
mentalizei a luz violeta
fluindo para dentro de meus chackras
elementais
era de aquário
o cifradíssimo perfume do fumo
analogias possíveis da matéria menos densa com
as sessões de psicanálise
180 (cento e oitenta) cada
sexualidade reprimida
parafilias casamento no fim
traição sem sal
auto-estima 0 (zero)
e então
indicador
e polegar se tocam levemente
energia prânica lótus de 1000 (mil) pétalas
pronto!
mais um poema sobre porra nenhuma!"



 liquefeito

"distraídos
porque nos beijávamos

distritos
expandiam-se em oceanos de pele e
cintilâncias galáxias de evanescência

por mim
o orvalho gotículas de saliva doce

hidromel que poreja
sumo de ambrosia para além psi

aleluia!"

sábado, 5 de junho de 2010

Gota

Tela de Salvador Dalí

Sai despenteada e apressada. Primeiro a filha na escola, depois o filho na natação. A Ioga fica pra depois. Volta pra casa, coloca a roupa na máquina, lava a louça da pia. Vassoura na sala, pano nos quartos, desinfetante no banheiro. Hora de buscar o filho na natação. Passa o uniforme, dá banho, comida, penteia os cabelos, deixa na escola com um beijo e um eu te amo. No ponto de ônibus lembra que precisa estender a roupa. Volta mais uma vez, pendura a roupa na corda, coloca as panelas na geladeira e, no portão - no exato momento em que as chaves caem no chão - percebe que está de chinelos. Verdes limão. Com a maquiagem já derretida entra de novo e coloca os saltos. Olha no relógio, já deveria estar na reunião. Desiste do ônibus, pega um táxi. Chega atrasada, dá boa tarde, escuta, organiza, propõe, resolve, indica. Fica aflita. É muita coisa e não há tempo. Delega, entrega e sai correndo. Hora de buscar os filhos na escola. Pega um ônibus, vai em pé. Hora do rush, engarrafamento. Abre um livro e vinte páginas depois desce na esquina. O salto quebra - estava demorando. Tira os sapatos, joga na lixeira e vai descalça. Pega os filhos, um beijo em cada um mais dois eu te amo, como foi o dia. Duas mochilas, mais bolsa de compras, laptop e pasta de couro. Quase não dá, mas tem que dar. Prepara a janta, ajuda no dever de casa, dá banho, conta uma história de dragões e princesas pra agradar os gregos e os troianos que dividem o mesmo quarto. Mais um beijo em cada um, dois eu te amo e um boa noite, durmam com os anjos. Apaga a luz. Respira. Descalça, caminha sem pressa até a cozinha. Abre a garrafa lentamente e escuta atenta o barulho do líquido estalando os cubos de gelo no fundo do copo. E aquela gota - não a mesma, outra - amarelada, reluzente, abrindo caminho pelo corpo transparente do vidro, caramujando em rolamentos circenses quase chegando ao rótulo avermelhado; aquela gota inteira, insistente, que magicamente a transporta para outro lugar. O lugar das maravilhas que, de tão mínimas, se tornam quase invisíveis aos olhos do tempo que escorre. E ela agradece por mais esse micro-poema que orvalha diante do seu rosto cansado. Porque enquanto a gota - aquela, não outra - estiver serpenteando garrafa abaixo e seu coração se mantiver atento à ela, sua vida já valeu a pena. E o amanhã será sempre outro dia.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Adiante*

Abriu um vinho. Tinto e seco. De shorts e meias, colocou no aparelho de som a inconfundível trilha íntima das noites vazias, enquanto o líquido encorpado suspirava - sutil - dentro da garrafa esverdeada. Quando as primeiras notas começaram a escorregar pelos ouvidos, se enrodilhou no sofá puído de terceira mão, com as duas pernas dobradas por debaixo do corpo franzino. No mesmo canto de sempre - segurando o cachimbo amarelado e mordido, com o zelo próprio de quem se fez confidente - levou ao nariz a taça bordeaux pela metade. Inspirou os aromas harmoniosos com a suavidade de quem está habituado a reter em si o que há de melhor nas coisas, e em um curto gole permitiu que aquela elegante maciez - rica e aveludada - inundasse a língua e envolvesse o corpo num prazer único e deliciosamente aconchegante. Preencheu então as próximas horas com seus poucos pequenos prazeres, e se alimentou da sensação etérea de estar na melhor  companhia. Sorriu um sorriso branco simplesmente por compreender, enfim, que acariciar sua própria alma era o bendito-santo-remédio pra tanto sofrimento sem laço. O nó se desfez. Pelo vinho, pelo fumo, pelo fundo do poço que desenredou em si mesmo, se fez abraço. Nesse dia ele estava só. Mas apenas porque aprendeu a desfrutar da felicidade sublime de se perceber assim, sem ser dilacerado pela brutal e desumana solidão dos seus dias de morto.
Ele estava só.
Mas estava inteiro.
Sylvia Araujo





* Republicação por falta de tempo de postar um texto novo. Ainda sem computador. Ê, lerê! rs
Uma beijoca florida