Foto do blog: Mario Lamoglia

segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Navalha


(Alto mar no final do horizonte - Joca Libânio)



À Joca Libânio e sua música perturbadoramente silenciosa.

Entorpecida.
Violada. Rarefeita.
Violentamente (desman)telada.
E toda. Viva.
Um mundo inteiro dentro
a regurgitar belezas.
Tão grande-imenso. Tanto.
Tão pouco santo. O manto.
Jardins brotando em fúria
de flor em cacto. Seco.
Rompendo estéril. Um risco.
Asas me rasgando o peito.
Nu.
Completamente nu. Alado.
No céu da boca, o sal.
A gota - gorda.
E no minuto seguinte a morte.
O calabouço. O medo.
E o calor da sorte
a me acetinar o frio.
E o sabor do vento
a me saltar dos olhos.
Enlarguecida.
Emocionada. Liquefeita.
Amanhecidamente enluarada.

(entregue)

Sylvia Araujo


quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Neutrino



Amanheceu lentamente em olhos anoitecidos. O peito, enfaixado ponta a ponta de silêncios, chorou baixinho - como quem murmura ao vento frio sentimentos indizíveis. Na cabeceira, a vela acesa da noite escura resistia. Pequena e morna, em seu amolecido derretimento de vela. Aquelas sombras enormes a lhe pegarem pelas mãos geladas. Aquele mesmo conhecido medo a existir sem. Aquele mesmo sem. A resistir só.


Sylvia Araujo

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Flor *



O sol está brilhando lá fora. E ela não tira da cabeça o dia em que viu aquela flor. Jamais sentiu tamanha doçura no coração. Mas não é a flor, é ela. As cores se misturando e o cheiro adocicado, apenas despertaram em si o sentimento de ser. A flor é. Delicada, perfumada e com traços só seus, não saem da cabeça de quem se deixa tocar pela profundeza, da simplicidade e da pureza que carrega consigo. E ela se deixou tocar, acariciar, deliciar. Viu - e sentiu - o poder da vida em sua simples carapaça de vida.

O mundo está correndo lá fora. E ela não tira da cabeça a flor que um dia viu, esparramada sobre o muro cinza - rachado, imundo. Estava lá, resplandecente - deslumbrante em sua importância de flor. Viu - e sentiu - o sopro de amor que vinha, e se deixou acalentar, alimentar, sorrir. Guardou pra si a amplidão do que viveu, naquele mínimo instante em que se deixou tomar pelo belo.

A partir daí, tornou-se a mais linda delas. Desencantou e se encantou com as sensações que o viver nos traz. Não é mais ela e sim flor, com todo seu encanto e ardor.

Sylvia Araujo

* Republicação



Queridos,
Mais uma vez peço mil desculpas pela ausência aqui, e nos jardins de vocês. Estou num momento conturbado, muitas coisas acontecendo ao mesmo tempo, e não posso desperdiçar as oportunidades. Quando não estou isolada nas minhas páginas em branco, apareço pelo facebook, pra rir um pouco e me distrair. Por enquanto, beijo vocês por lá. Em breve volto à ativa. Continuem torcendo por mim!
Beijoca enorme

terça-feira, 10 de agosto de 2010

B(r)aile


Sou
inteira
pedaços
fragmentos
cortantes
sílabas
impronunciáveis.

A lápis
me escrevo
à espera
de quem
me soletre
os relevos

- em braile.


Sylvia Araujo

domingo, 8 de agosto de 2010

Teatro

Ensaio de Marcia Medina para o meu monólogo Serial Killer. Em breve estreando em São Paulo.
Aguardem!

Parte I

Parte II




Arrepia a nuca ver um personagem teu criando vida dessa maneira tão intensa.
Obrigada, Marcia, pelo teu olhar profundo e pela tua entrega a essa mulher estranha!

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Recomeço *


- É, fez sol. (Inevitável o sorriso no canto da boca - secosarcástico)

Ela fez de tudo pra tempestade que vinha esperando cair. Acordou sem dar bom dia aos gatos negros dos olhos melados, tomou um banho gelado e se postou nua - de frente pro espelho. Na cara, desgosto. Olhou. Se viu. Se absorveu. Aborreceu.

- Vai chover. Torrencialmente - desígnio que se deu antes mesmo de sequer abrir a fresta da janela.

Pegou a necessaire dos dias cinzas - aquela dos tons arroxeados - e espalhou na mesa suas cores de dor. Era luto o que sentia, e os olhos, a boca e os medos também sabiam da chuva. Sentiam. E foram, em ritual, se transformando escuros, marcados, doídos. Sorvendo em jejum o copo de água com limão, se olhou reflexo. Endureceu.

- Vai chover, trovejar, alagar.

Abriu o armário e foi direto pra gaveta dos esquecimentos. Estavam todos lá - intocáveis - os tecidos mais duros e coniventes de toda uma vida de entregas. Escolheu o que melhor combinava com as unhas vermelhas-descascadas enormes e pontudas, cultivadas especialmente para o encontro dos raios e trovões.
De sobretudo preto-imenso tampando metade dos rabiscos de morte multicores que gritavam na pele branca da batata da perna, sentou no canto do quarto. No chão. Colocou o coturno pesado como quem se protege da guerra, como quem nunca mais viu leveza. Com a cara e os cadarços amarrados com força, se fez nó - indissolúvel, intransponível. Levantou, pegou a bolsa cheia de dejetos e trapos e bateu a porta - certa da despedida.

- Já está chovendo, desaguando, desabando tudo; é sempre assim...

Mesmo de óculosescurosmaisescurosimpossível, sentiu a poderosa claridade assim que ouviu a primeira buzina, antes de atravessar o portão. E percebeu que - mesmo que queira e se prepare cuidadosamente para a chuva - quando o sol põe na cabeça de brilhar, ele vem. Não tem jeito. Fim.
Desordenada, encabulada e por fim divertida, largou os cinzapretos no canto da grade e saiu descalça, com a maquiagem pesada borrada pelos rios de incredulidade. Um sorriso de alívio, discreto, se fez notar nos lábios.

- É. Fez sol.

Sylvia Araujo



* Republicação com pequenas alterações.

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

Magia *


Suas mãos se assemelham a cansadas cordas de aço entrelaçadas. Quase sempre imóveis, só é possível vislumbrar as palmas - queimadas pelo calor das pedras - quando se rendem ao mímico diálogo com os pássaros pretos. Gestos ventados ao ar, os dedos desenham incompreensíveis contornos pouco acima da linha do horizonte, enquanto a boca seca cala.

Ela também é alada.

Seus cabelos, derramados ombros abaixo feito cachoeira prateada, têm como preocupação apenas seguir a inconstância do vento. Por vezes se embolam com as correntes ao longe e, de lisos, mimetizam em intermináveis vagas rebeldes. Eles vêm e vão, redemoinham e adormecem conforme a maré. Fios revoltos, não se distingue onde começa e termina seu corpo enquanto flutua.

Ela também é partida.

Sua pele é um conglomerado impreciso de retalhos que misturam rugas e cores aleatórias e marcadas. O corpo é delgado e frágil, e os ossos pontudos revelam por baixo do tecido duro e surrado uma silhueta friamente geométrica. Em postura triangular, mantém a espinha ereta e as pernas cruzadas - as rachadas plantas dos pés para cima. Com a cabeça voltada para o norte, tem os olhos sempre encobertos de névoa, mesmo nos tempos mais quentes, enquanto evapora.

Ela também tem segredos.

Sua vida segue sem que jamais tenha tentado transformar pura magia em meras palavras. Em seu mundo, letras são míseros rabiscos frente a imensidão gloriosa dos sentimentos que vibram. Ela não fala. Ela não escreve. Enquanto muitos a definem louca por inacessíveis e degradantes sinônimos, ela enxerga o vento e o beija.

Ela está muito além.

Sylvia Araujo



* Republicação

PS: Queridos, estou completamente atolada em textos inéditos e secretos rs e não estou tendo tempo para escrever posts fresquinhos e visitar vocês como gostaria. Um novo projeto está a caminho e logo-logo estarei de volta, firme, forte e presente, como sempre. Torçam por mim!