Foto do blog: Mario Lamoglia

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Mimetismo

Fechei os olhos e fui embora pro meu canto de pássaros e águas correndo. Me empoleirei na árvore frondosa, me espalhei em seus muitos braços, desapareci. Agora sou caule, folhas, seiva bruta - estou silêncio admirado da grandeza do verde, do profundo espelho do lago. Trago em mim os vazios do mundo inteiro, pra encher - gota a gota - dos mais delicados gorjeios. Sou ventre em asas, sou céu.

Soul
música
muda.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Vácuo de repentinas faltas

Naufrágios. Fome de terra firme - ganas de ar queimando a garganta muda - afogamentos. Nas costas curvadas, milhares de quilos, ausências. No horizonte, milhares de pântanos, litros de vastos mares - nos cabelos, âncora. Um vácuo cheio de repentinas faltas, estúpidos faleceres e memórias rotas pulsando debaixo da pele: eu arranho a derme, arranco os vermes, soluço o vírus, o sangue contaminado, o pouco suspiro. O susto de um breve sorriso oblíquo, de quem não tem medo - e ainda assim treme (e teme o frio) - me enregela. A espinha eriça e as pupilas vagam, foscas. É pesado o punhal que atravessa o tanque e faz escorrer o viscoso óleo da vida. É brilhante a lâmina, é quase espelho. E quando a ferrugem se esparrama feito hera sobre a labiríntica maquinaria do coração, e a maresia emperra o respiro inconstante dos parcos desejos, são meus olhos chovendo sal - mais nada. Sou eu, desespero puro, me agarrando aos restos - as ondas crescendo, a cada segundo maiores, enormes, negras, pesadas, brutais. Sou eu, meus mesmos e inesgotáveis naufragares. Sou eu, insistente naufrágio em mim.

Sylvia Araujo

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Suspiro de uma nota só

Quarenta anos. Um pouco mais, talvez, mas não passava dos quarenta e cinco, disso estava certa. Os olhos diziam muito mais - eles sempre dizem muito mais do que a boca ou o corpo almejam - e traziam séculos dependurados nas bolsas escurecidas, que faziam moradia bem embaixo daquela beleza arredia. Eram bonitos sim, eram muito bonitos aqueles grandes espelhos cor de mel derretido. Mas por algum motivo, fugiam, perdidos, ela sabia. Escondidos detrás daquela cortina espessa e leitosa, eles sorriam uma tristeza bonita, de quem escorre e morre com fome de vida, de quem maldiz a sorte e deseja com todas as forças um amanhã reluzente de sol. 

Debruçado no balcão, de pé, ele virava um copo atrás do outro - as lembranças afogadas no líquido amarelado, o soluço asfixiado pela espuma branca. Ela, serena, de longe observava. Chegou até mesmo a ver, em uma micro fração de segundo, uma lágrima tímida e transparente que ameaçava, insistente, se lançar do parapeito ciliado. E acompanhou, atenta, os movimentos enérgicos imediatos dos braços, os gritos exasperados, a gargalhada enfurecida de quem descaradamente se aproveita da falta do meia-direita - em atacante do time de outro estado - para exorcizar seus próprios fantasmas, congelar seus próprios demônios. Ninguém percebeu o tanto de ausências que escondiam aqueles muitos excessos, mas ela, do meio do seu próprio buraco, assolada pelo dolorido reconhecimento da falta, avistou e doeu junto.

Em algum instante, que nunca-jamais saberão precisar, por conta do tamanho atordoamento daquele enfrentamento, se olharam. Subiu bailarino pelo pescoço esguio dela, tomando todo o seu corpo rígido, um cheiro  intenso e árido de desejo e medo. Um gosto de culpa, de auto-flagelo, de fracasso certeiro lhe amortecia a língua seca - ela virou o copo quase cheio, sem desviar dos olhos dele. Queria engolir aquela dor. Queria tomar pra si, fazê-la abraçar-se à sua, se derramar inteira. Queria dizer do amor. Levantou da mesa e se aproximou - os olhos mudos e úmidos a denunciar seu gesto contido. Bem perto, enquanto os cansaços se fundiam em um único suspiro de uma nota só, abraçaram-se com força - dois desconhecidos que se sabiam como ninguém. Olhando-se bem dentro, os dois precipícios amedrontados a entrelaçarem as lembranças e os futuros incertos, brindaram o amanhã - hasteada, tremulava a esverdeada esperança bonita, em um sorriso branco e feliz.

Sylvia Araujo

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011



Que a minha falta de ausências nunca afete os meus afetos.

(é tudo sempre o tempo todo em mim)

Sylvia Araujo

Bisturi




O pudor castra(a)dor de ser.

Sylvia Araujo