Foto do blog: Mario Lamoglia

sexta-feira, 30 de julho de 2010

Exaustão *


Depois de guerrear mais horas que preciso, vem afrouxando o nó da gravata puída e desabotoando os punhos amarelos, cambaleante a caminho de casa. Mete a chave na porta e, quando pisa na cerâmica quebrada, pressiona a ponta do sapato surrado no outro calcanhar. Ato reflexo. Pés descalços, larga a maleta lotada de papéis desimportantes em cima da única cadeira, puxa do bolso o maço amassado de cigarros e segue até a pia abarrotada de esquecimentos. Abre o frigobar vazio, apoia o copo de vidro lascado, enche de gelo até a boca e derrama o whisky de segunda - até cobrir a metade dos cubos. Seu conjugado mede exatos cinco passos número 43 até a janela. Mais dois pra cada lado. Espaço suficiente para abrigar seu mísero ego de filho terceiro de mãe sofrida. Sôfrego por uma lasca de ar, segura com as mãos trêmulas o cigarro aceso e a poção mágica, e apoia os cotovelos no parapeito do mundo para observar o nada. Abraça com força o silêncio pesado, enquanto rejeita todas as máscaras que se obrigou a usar durante o dia. Agora é noite. Já passou da hora de fazer alarde. Repete a sessão cigarro-copo-parapeito até perceber o início da íntima dormência na ponta dos dedos e a aproximação dos sonhos bonitos. Satisfeito, abre o chuveiro no máximo e se afoga inteiro na água gelada, ao mesmo tempo em que cantarola baixinho a lembrança gostosa com cheiro de infância. Quando deita no colchão antigo - exausto do tudo que foi, sem nunca ter sido - imediatamente encerra seus olhos turvos. Transbordando lágrimas secas e engasgos latentes, implora - com o peito aberto e os punhos cerrados - para não amanhecer vivo. Nunca mais.

Sylvia Araujo



* Republicação

quarta-feira, 28 de julho de 2010

Ainda bem


Amanheceu verde - musgo fértil em ventre de pássaro brotado em horizonte. Antes de abrirem as janelas, lhe descortinou rebelde um sol redondo pelos olhos negros - os raios quentes lhe atravessando íntimos os poros abertos. Sorriu bem dentro, em céu da boca estrelado e dentes pequerruchos de marfim - as covinhas afoitas se debruçando enamoradas no parapeito das velhas rugas - e lentamente amareleceu. A brisa morna fez dançar de leve as cores vivas no varal, e veio delas em magia um cheiro adocicado e primaveril de campo em flor. Um gosto exuberante de tomilho lhe tomou de assalto a ponta da língua - sabor de lembrança que abraça apertado e não deixa partir. Permitiu então que brotasse em pura nascente uma lágrima bonita - perfeita em sua transparência arredondada - que lhe atravessou solene o rosto estreito, como quem mergulha de corpo inteiro em mar aberto, como quem assopra com toda a força dos pulmões um dente de leão - só pra ver a sua alma voar. Dia pleno, pediu ao marido-encantado que lhe escovasse com energia os brancos fios, pra sentir de olhos fechados mais uma vez o prazer do couro cabeludo se esparramando em cascata pelos lençóis trocados - a maciez de algodão a lhe afagar delicada os ombros cansados. Ao longe, uma melodia suave serenava - flautas transversas e violinos em dueto, conversavam poesia sobre rosas-chá. Falavam emocionados do brilho das estrelas e do coaxar dos sapos, como quem fala de champagne e caviar - ela embevecida, ouvia. Noite alta, pensando - o ar faltando e o amor sobrando no peito murcho - achou um bocado estranho tanta vida lhe assoberbar assim os minutos contados, fazendo toda essa batucada irrefreada no coração exausto. Então, em sussurro abraçado ao último suspiro - mastigando com calma todas as vezes em que pisou descalça a grama e dançou em par na chuva - agradeceu baixinho: ainda bem que em mim tudo sempre foi assim. E voou.

Sylvia Araujo

domingo, 25 de julho de 2010

Contramaré


Envolta no ar rarefeito das minhas noites vazias, cato - uma a uma - as recordações espalhadas pelos meio-fios imundos dos sonhos que sonho. Você está sempre lá, piegas em seu romantismo exposto, em seu peito aberto, em seu derretimento de pessoa que nasceu para amar - e não se importa nem um pouco em ser contra-mão. É sublime a entrega que me faz desse teu coração sem remendos, assim, na bandeja dos dias. E eu te nego, como nego a mim mesma, fazendo cara de nojo e cuspindo com força no prato em que comi. Não te quero inteiro-rastejante - fecha teus olhos e me escuta. Eu te quero não, entende? Te quero a negação dos meus desejos, dos meus planos de menina boba à espera do príncipe encantado, das minhas aspirações de mulher feita. Te quero o que não pode ser, porque só assim me rouba o sono e me deixa latejante à espera de um porvir. Só assim me tira o ar e os pés do chão. Não nasci pra ser pato em lago plácido, mas tubarão em mar revolto à espera da caça, camuflado na vastidão azul enegrecida das profundezas. Preciso nadar com fúria - contramaré furando as ondas - até me quedar exausta e sentir a vida viva pulsando em ária por debaixo da pele. Preciso que você me escorregue por entre os dedos, pra que eu vá enlouquecida ao teu encontro e te segure firme pelo pescoço - meu homem. Te quero arisco, imperfeito, falha. Te quero navalha no pulso, sussurro inclemente, sexo. Por isso hoje, em letras borradas, esse amor intocável arde. No cinzeiro cheio de cigarros fumados, os restos de uma carta* - cinzas de um nós que nunca existiu além de aí, dentro de ti.

Sylvia Araujo


* João Guimarães Rosa - A inspiração.

quinta-feira, 22 de julho de 2010

Amputada

No vaso
no centro da mesa
a flor
reinante
em amarelo
implora
em silêncio
torturante
a luz cálida
do dia.

Deseja
quase murcha
a terra
fértil
e restaurada,
os beijos
doces
e o sopro
torpe 
das borboletas.

não há quem
possa
lhe criar raízes
onde
a faca
cega 
lhe amputou
o talo.

Não 
há quem possa.


Sylvia Araujo

segunda-feira, 19 de julho de 2010

Mergulho *

Caminham enlaçados pelas ruas sem destino, cantarolando a mesma música, às seis da manhã. Depois de uma noite inteira cheirando à sonho, mastigam pastéis de feira como se fosse rotina dividirem o mesmo tom. É como se o ontem virasse outra história, e as páginas começassem a ser preenchidas a partir do primeiro sorriso de cúmplices que trocaram, assim que o sol nasceu.
Se olham no fundo da alma, como quem identifica - como quem certifica - que não existe outro lugar pra se estar, além de ali, sentindo tudo aquilo.
Sem trocar uma palavra, se atiram. Juntos. De cabeça.

Sylvia Araujo



* Texto do início de 2009, republicado.

sexta-feira, 16 de julho de 2010

Lareira



Le mins (qui)na
Lê meus lábios
Lê meu corpo
Meus pelos
Meus braços
Lenha me
Na cabeceira dos dias
Abajur ligado
Me enluare
N(cr)ua.

Sylvia Araujo

terça-feira, 13 de julho de 2010

Free *


Depois de um dia inteiro regurgitando fracassos, junto com o pastel de vento e o copo de refresco aguado que colocou pra dentro às nove da manhã, chegou em casa quase rastejando e se jogou no único espaço da casa onde não havia roupas e tralhas espalhadas. Num ato reflexo, abriu a bolsa entupida de dejetos e pegou o maço de cigarros amassado. Vazio. Virou a bolsa no chão e encontrou mais dois maços. Também vazios. Entrou em pânico. No meio do monte de papéis cheios de números sem nomes, canetas quebradas e cacos de vida, viu quinze centavos reluzentes. Levantou tremendo e caramujou até o quarto. Esvaziou cada uma das nove bolsas multicoloridas e contabilizou: doze centavos em moedas de um e cinco. Faltavam três. Três míseros centavos pra que conseguisse enfim pregar os olhos. Pegou cada calça das enormes pilhas de roupas que se perdiam em cima da cama e das cadeiras - uma a uma, meticulosamente. Nada nos bolsos, além de lixo e areia. Nem se preocupou em verificar de onde veio a areia, o que provavelmente tentaria explicar - ou compreender - uma semana depois, quando resolvesse organizar sua vida de uma vez. A única coisa em que pensava era que precisava de três centavos pra conseguir voltar a respirar. Em desespero, depois de revirar cada caixa, cada bolso, cada canto mais improvável da casa, resolveu colocar as moedas pequenas no bolso do short mais velho e curto da adolescência, e sair cambaleando pela rua vasculhando o chão. Na primeira esquina vislumbrou cinquenta centavos. Antes de sentir o alívio percorrendo a espinha, percebeu que a moeda não valia mais, como a maioria das coisas na sua vida de merda. Durante a volta no quarteirão escuro e vazio, encontrou - no meio de uma pilha de folhas úmidas quase apodrecendo - um círculo cor de bronze. Cinco centavos quase irreconhecíveis. Com seus preciosos trinta e dois centavos nas mãos suadas de unhas mal feitas, apressou o passo até invadir o boteco mais imundo e degradante de Vila Isabel. Do meio de montes de seres cambaleantes e fétidos levantou um dos braços e pediu ao português de bigode engordurado, com a caneta atrás de uma orelha e o ramo de arruda murcho atrás da outra: Um cigarro varejo, por favor. Entregou as moedas que tilintaram nas palmas enormes do sujeito, quase ao mesmo tempo em que puxava o isqueiro preso na corrente, ao lado do balcão, sem se preocupar com os valiosos dois centavos de troco. Foda-se o troco! Antes de abrir a porta de casa, depois de quatro longos e inebriantes tragos, a fumaça terminou seu trabalho. Sem escovar os dentes, pra não perder nem um único segundo do adormecimento causado pela nicotina, afastou as roupas, os medos e os sonhos, se enfiou debaixo do lençol puído e fechou os olhos, torcendo pra que o sono dessa vez chegasse rápido, mais rápido que a fome do corpo e do coração.

Sylvia Araujo




* Texto de 2008 parcialmente alterado.

domingo, 11 de julho de 2010

Securas


Ela sabe dos hojes. Antes que o sol desponte, que o calor aqueça, que a luz ofusque com tanto brilhar, levanta e repete incessante todos os passos de todos os dias. Ainda se assombra com a imensidão dessa sombra que lhe persegue os chinelos até o banheiro e de volta pra cama. Ainda tem medo da morte que ronda, que abraça e sufoca seus sonhos, seus planos, sorvendo seu ar de bailarina amputada com a lentidão malevolente dos carrascos. E ainda assim, tremendo, temendo, não revida; aperta estreito os olhos pequenos e franze com força a testa larga - os tantos fracassos rasgando estrada entre as sobrancelhas grossas. Camila costura desejos com linha solta desde que se entende por gente. E a cada passo um pedaço enorme de si despenca no chão - o corpo estremece. Espera ansiosa que a claridade desfaleça em rotina por detrás das cortinas e lentamente se esvaia, para que a escuridão se justifique em si mesma e não precise dar explicações pra tanto negrume que carrega no peito - pra tanto não no coração. Menina bonita em capa de chuva, respira ofegante entre insucessos e securas, porque nunca foi capaz de dar um laço. Jamais abriu sequer um tímido sorriso pra flor que desabrocha dançarina no jardim ou deixou que a brisa morna lhe beijasse os cílios e fizessem voar livres as mechas douradas dos cabelos soltos - é mais fácil viver de resmungos e não-ditos do que abraçar apertado as inconstâncias, e aprender vez ou outra com o dolorido das ausências. Cavando com as mãos compridas de unhas vermelhas roídas um buraco profundo e estreito, suspira cansaço e se deixa enterrar pela terra fecunda. Pra ver se um dia - quem sabe - vire raiz e renasça feliz; e seus hojes vazios-cinzentos desabrochem, enfim, em surpreendentes e coloridos amanhãs.

Sylvia Araujo

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Fênix

Rasgou meus livros
Partiu meus discos
Arranhou os móveis
Quebrou o espelho
Juntou suas coisas
Nem um adeus

Dobrando a esquina
me ouviu sorrir
e lembrou que
esqueceu
de atear
fogo 
em
mim
X


Sylvia Araujo

terça-feira, 6 de julho de 2010

Semente


Ela vivia me dizendo que tinha asas - amarelas, enormes, emplumadas. Mas eu não botava fé. Nunca fui de acreditar em nada que meus dedos não pudessem sentir, ou meus olhos acompanhar. Se era mesmo alada, como é que não voava? Tanto céu por aí, dando sopa. Se fosse eu, dava rasantes por cima do verde do mar e escolhia as minhas estações preferidas, só mudando a direção do voo - norte-sul-além-azul. Um dia, lhe ofereci meu precipício mais alto - o maior dos buracos que trago no peito - só pra ver se ela se jogava lá de cima, corajosa, impetuosa, e flutuava. Mas nada. Ela me disse por trás de um sorriso, que saltar de cima de penhasco é suicídio, e quer mais é viver essa vida danada de boa e ser muito feliz. E disse ainda que as asas só funcionam mesmo na imaginação, quando a gente abre um livro, por exemplo, e vem dele um cheiro, um sentimento, que faz o coração ficar bobo e levantar do chão. Mas meu coração é pedra, eu disse a ela, pedra pesada não rola e nem sonha. E então, ela abriu a boca pequena e rosada e fez soprar lá de dentro aquele vento suave e morno de primavera em flor. E me fez brotar inteira - pétalas multicores me subindo aos montes pela cabeleira. Beija flores dóceis vinham me pousar nos olhos e tiravam levemente meu corpo do chão. Ela, bonita em seus montes de laços de fita, abriu suas asas compridas de sol e me levou pelas nuvens, bem longe dali. Lá, pertinho de onde a tristeza não mora e a beleza explode nos poros da gente, abri meus braços de penas e chovendo salgado, amanheci semente.

Sylvia Araujo

domingo, 4 de julho de 2010

Um tango na noite



regar o plexo com silêncio
soltar as feras da vontade
se à sede cedem
pois querer é grito
é berro incontível
é ponte é precipício
do abismo para o nada


Fabio Rocha e Sylvia Araujo




Nota: Poema a quatro mãos, em uma noite sem estrelas no coração, fez nascer a lua em grito. Pra quem ainda não conhece as belezuras que o Fabio sopra, vai lá no Da Busca e se encontre! 

sexta-feira, 2 de julho de 2010

Pra puta que pariu


Vento na cara, a cabeça quase toda pra fora da janela e um sorvete de baunilha derretendo na mão. Exatamente essa foi a cena esdrúxula que me fez sentar ao lado daquele cara quase maltrapilho que escutava Roberto Carlos no último volume, num mp3 fodido de visor rachado e que ainda por cima fedia a cerveja choca. O mais inacreditável é que ele quase não se mexeu quando lhe dei um tranco na perna direita escancarada, como maneira educada de dizer chega pra lá, ô caralho! Fiquei intrigado, te juro. Quem é o retardado que meio dia - sol à pino - um calor da porra fundindo qualquer cérebro que efetue a mais mobral das adições, fica em pleno ônibus em dia de branco praticamente gritando "vou me agarrar aos seus cabelos, pra não cair do seu galope", enquanto aquele creme amarelado e espesso escorrendo em bicas pelos dedos caga a calça toda? Visão do inferno, né não? E ainda assim, com pelo menos doze opções de lugar pra sentar em paz, eu queria estar sentado ali. Você pode elaborar todas as teorias psicológicas embasadas em todos os estudiosos de mentes insanas que talvez nem tenham nascido, e com certeza não vai conseguir chegar a uma conclusão plausível. Nem eu. Nem ninguém. Porque é realmente impossível compreender o que pode atrair alguém feliz, bem sucedido, filho de pai e mãe equilibrados, carreira de administrador de empresas em plena ascenção em um ano e meio de formado, e um namoro de quinze anos sem qualquer tipo de estremecimento ou ruptura - e olha que eu só tenho 28 anos! - a um pulha desses. Um merda, um meia-boca, que provavelmente mora com os amigos em um muquifo qualquer, porque ninguém suporta nem merece limpar tanto vômito consecutivo nessa vida. Tô falando besteira? Acontece que esse filho da puta do André mudou a minha vida. Você deve estar aí se perguntando: peraí, como é que esse cara sabe o nome da figura? Pois bem, eu preciso te dizer uma coisa muito séria. A partir daquele dia que aquele cara levantou daquele banco cinza imundo, o cabelo todo desgrenhado por causa da ventania poluída, enfiou a mão gosmenta no meu ombro e falou foi mal aí, irmão, eu larguei aquele emprego de bosta, mandei todo mundo pra puta que pariu, troquei aquela anta por uma viagem de mochila pela Europa, tomei o maior porre da minha vida - tá, disso eu não me orgulho - e comprei um violão. Hoje eu te digo de coração, meu camarada: não tem nada melhor nesse mundo do que sentar com aquele merda numa praça, birita e cigarro do lado, sentir esse vento fedido na cara e tocar um blues até a lágrima cair.

Sylvia Araujo



PS: Pra conhecer a alma livre, que fez com que esse texto me brotasse inteiro de uma só vez, praticamente sem pausa pra respirar, clique aqui e aqui. Valeu garoto, você é bom! ;)