Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 12 de abril de 2011

Agora é tempo que não existe.

Serpenteia lentamente, descendo sinuosa pela janela embaçada por úmidos suspiros mornos, uma chuva esfarelada, tardia. Nos olhos dos que entontecem diante do milagre das gotas, a incredulidade. E um desejomedo enorme de se fazer tocar pelo cristal amolecido - com a ponta das pestanas - pra saber, enfim, a dor da chuva que pinga do céu; e não do peito. O cheiro dos diasmesmos, há anos enraizado ali, se fazia amarelopoeira encrostado em pardacentos narizes - trincas na terra batida, dedos sem unhas, doídas ausências do que nunca existiu. Mas hoje, o tempo da casa vazia sem teto fede a um bolor umedecido de lama e lamentos. Fede a vida que vive, entrecorta respiros e se arrasta, sedenta. Hoje, o tempo, o mesmo tempo de todos os tempos, abandona sua gasta previsível couraça e se veste de agora - esse agora que é tempo que não existe, que é quase tempo quase vivo; esse agora que é broto dentro, esperança ateia.

Nunca houve um amanhã. Nunca houve um logo mais, ao entardecer. Jamais se soube, naquela planície estanque, de um dia após outro dia, de uma fruta apodrecendo em seu ritmo, de um rio sussurrando nasceres, de um começo ou de um fim ou de agoras. O ontem é só referência pra morte, dali a lei diz, e ao que não vinga não cabe findar-se. A mesma luz abafada e perene rodopiou anos a fio em círculos concêntricos por um campo eternamente brotado de nada, dia após noite, noite após dia. Parecia existir apenas para dizer aos poucos que restaram que, ali, naquele início de fim de mundo, onde nada morre e nada vive, onde nada amanhece ou anoitece, não há finalidades e tudo é pra sempre, que não adianta sequer tentar morrer, pois não se pode terminar o que jamais se começou. Durante incontáveis gerações sem chuva, o dia foi um enlouquecido torturante repetir-se em si mesmo. Um não viver ainda que vivo, morto.

Aqueles olhos, escondidos atrás das janelas salpicadas de vida, observaram atônitos o nascimento das coisas e o ágil refastelar das heras nas paredes nuas. Segundo após segundo, terras se abriram e delas romperam, febris, frondosas árvores e brilhantes arbustos. Pequenos pássaros nasceram de asas abertas e, das fendas no chão rasgado, rumaram aos bandos ao encontro de borboletas e gaviões. Lambaris, lagartos, sapos e grilos, rios e mares, flores silvestres, grama nova, tudo borbulhando aos borbotões da terra enlameada. Os olhos, famintos em sua esterilidade inata, com a violenta força de algumas poucas lágrimas frouxas, choveram. Choveram por horas e horas para que, junto com a terra e seus recém-nascidos amanhãs, pudessem também fazer nascer e morrer o agora, dentro de si. Com um gosto adocicado e vermelho descendo suave garganta abaixo, abençoaram, sem um único piscar sequer, aquele primeiro e último alvorecer.


Sylvia Araujo

domingo, 3 de abril de 2011

Muda sinfonia




É longe, a noite.
Ainda que aqui
- em mim -
é braço inteiro de distância
mais dois sorrisos
murchos.

É dentro, o escuro
que engole a chama tremulante
e vara
os dois pontos brilhantes
- equidistantes -
do teu céu.

Fecha os olhos
e canta,
que amanhã
azulo.

Sylvia Araujo