Foto do blog: Mario Lamoglia

domingo, 27 de junho de 2010

Indistinguível


Inerte. As mãos negras e disformes boiando flácidas em sangue frio. Sentia um fiapo de vida latejar no pulso esquerdo partido, e rosnava por dentro. Não era dor, mas ódio o fio tênue que mantinha seu coração cansado batucando frenético dentro do peito. Noite fria em beco escuro não é tempo de ficar estirado no chão feito dejeto. Ainda assim, lá estava ele abraçado ao meio fio, aos restos de madrugada pútrida e às ratazanas famintas - indistinguíveis. Sentia no rosto um constante fisgar, e do olhar em horizonte fugia apenas um vislumbrar leitoso de imagens retorcidas. Ao fundo, um poste apagava e acendia - ritmado. Ou seria uma lanterna? Ou seus tantos desmaiares? Tentou mover as pernas e não conseguiu. Em pânico, imaginou o revirar do pescoço, mas eram apenas os globos girando nas órbitas e a palavra queimando feito incêndio na garganta. Nem um som se ouvia, além das gotas gordas que escorriam dos seus olhos vítreos e pingavam quentes no chão de concreto. Chovia através das pálbebras inchadas, um gosto salgado fazendo arder os cortes profundos nos lábios. E ele ali, inerte, implorando emudecido ajuda ou morte. Como num filme, Margareth lhe saltou à frente em batom vermelho e seios fartos. Dançava linda, enevoada pela fumaça da cigarrilha ao som de um blues qualquer - olhos fechados. Ela sempre fazia isso enquanto ele apertava o espartilho ou afivelava o salto. E lhe enxugava as lágrimas com lenço de seda, quando ser mulher aprisionada em corpo de homem virava fardo pesado demais e lhe anoitecia. Margareth era feliz com o que se transformara e talvez isso a tenha salvado da solidão. Enquanto ele, mazela pura, expurgava sozinho naquela sarjeta imunda, o veneno amargo que o consumia. Já não sofria. Com um beijo doce da única e fiel amiga, evaporou enfim em uma paz lilás.

Sylvia Araujo




PS: Tomei emprestado o lilás da evaporação bonita do Marcelo Novaes, no incrível Prosas Poéticas. O link logo aí em cima, de mãos dadas com a paz.

22 comentários:

Leo disse...

eu senti o cheiro de abundancia no ar, e saio daqui transbordante.

te deixo, com um beijo doce!

Machado de Carlos disse...

Seu texto é belo e muito bem escrito. Vale a pena degustar cada palavra descrita, quando vemos uma qualidade incomum! Escreva sempre.

Suzana Martins disse...

Dancei entre suas palavras sentindo o vento e a doce maresia!

Beijos

Paulo Rogério disse...

Incrível como vc. penetra na mente de um moribundo, dele extraindo os devaneios mais secretos!
Bj!

Sidnei Olivio disse...

Sylvia, obrigado pelas visitas no "proseares". Belo texto seu. Quando quiser publicar algo no proseares, será um prazer. Beijos.

Maíra F. disse...

Sylvia! Sempre leio seus comentários (lindos) no meu blog, mas nunca tinha entrado aqui antes. E, meu Deus, você escreve absurdamente bem. Um dos blogs que mais gostei de achar nos últimos tempos! Vou voltar muito e muito e muito.

Carlos Gonçalves disse...

Querida Sylvia, passei por aqui para conhecer-te e saí extasiado. Reflexiva e bela a tua prosa, me transporta para locais da minha adolescência, no Bairro Alto, em Lisboa.
Vou seguir-te, quero que me decifres, para não te devorar (sabes sou Leão de signo)!
Beijo, querida.
Carlos

Anônimo disse...

Isso que é conto, menina, minha nossa, incrível!

Beijos.

Mary Pereira disse...

Me fez estar alí, de perto a olhar e sentir tudo o que acontecia em cada linha...
Suas palavras fazem transbordar.

Bela escrita, mais uma vez!
Um beijo.

Juan Moravagine Carneiro disse...

Mergulhamos sem perceber em seu escrito...

que belo conto

abraço

Valéria Gomes disse...

És mesmo um exemplo!!!
Devoro tuas palavras com a ansiedade de uma criança a devorar um bolo de chocolate.

Beijos na alma!!!

Mafê Probst disse...

Bonito de doer. E eu não gosto de lilás.

meus instantes e momentos disse...

que voltar aqui e te ler.
gosto de ti.
Maurizio

Unknown disse...

mesmo anoitecendo de vez em quando era dia, evaporar em paz e feliz com seus demonios,

abraço

p.s. li tuas palavras e ideías na entrevista, muito bom

Luciana Marinho disse...

e aquele azul noturno é um vidro e margareth é o corte sedutor... a "carinhosa do Além, senhora do luto infinito, mãe suave e antiga das emoções sem gesto".

abraço!

Em@ disse...

Cheguei, Sylvia e deparei logo com este texto...Forte. profundo!
E...gostei muito do final. lilás condiz muito bem com paz. é mesmo uma cor pacífica, para mim , é claro.
Entre um beijo e um abraço escolha. ou então, fique-se pelo abreijo que não passa de 2 em 1. :)

Patrícia Garbuio disse...

lINDO,INTENSO...PARABÉNS!BJSSS

Maíra F. disse...

Moça talentosa, sinta-se à vontade pra mandar e-mails, rs. Eu realmente apaixonei pelas suas letras. Passei a tarde inteira aqui ontem, li vários e vários. Você me lembrou Clarice Lispector em alguns trechos, sabia? Enfim... Vi que você é do Rio também! Talvez sejamos vizinhas, rs. Beijos!

Zélia Guardiano disse...

Maravilha o seu conto, Sylvia!
Lindo demais!
Aliás , tudo que você faz, é bem feito, como por exemplo, responder às perguntas de Marcelo Novaes. Li atentamente e concluí que você, realmente, é do ramo...
Parabéns, querida!
Um enorme abraço

Jorge Pimenta disse...

questiono-me acerca de qual pudesse ser a cor que o criador terá cogitado na hora de pintar a paz... não me dicidia... deste-me uma ajuda; lilás parece-me uma excelente escolha.
um beijo!

A.S. disse...

Sylvia,

Belissimo texto poético! Simplesmente arrebatador...

Beijosss
AL

Arnoldo Pimentel disse...

Gostei demais do seu texto, aliás sempre encontramos aqui belos textos, parabéns pelo seu talento.Tudo de bom pra você, bjs.