Foto do blog: Mario Lamoglia

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Technics


Você não tem ideia de quanta coisa eu superei, abdiquei, passei por cima, fingi que não vi. Dizem que o amor é assim: a gente abre mão de tudo pra tentar evitar o inevitável. Eu já nem me importava mais com as suas calcinhas penduradas na torneira do box, te juro. Nem com os absorventes usados enrolados na beira da pia, ou a escova de cabelo entupida de fios compridos e dourados. Achava até bonito - acredita? - aquele sol brilhando pra mim por entre as cerdas pretas e finas, todos os dias pela manhã. As camisetas surradas e as cuecas sem elástico que eu adorava usar - antes de você liquidá-las - já nem me lembrava mais. E a caixa de ferro do whisky 12 anos, que abrigava a minha coleção de botões oficiais? Tudo bem que tenham virado depósito de esmaltes multicoloridos e apetrechos de manicure que você nunca usou - minhas poucas coisas ficam bem em qualquer lugar. Não me incomodava nem um pouco que todos os cabides do meu armário estivessem ocupados pelos seus vestidos. De verdade. Até consegui compreender que eles precisavam mesmo de mais espaço, e as minhas calças gastas não. Esvaziei as prateleiras dos meus enfadonhos livros de Economia para que os seus sonetos pudessem respirar melhor, e deixei de lado os meus planos - todos eles - pra satisfazer os teus caprichos. Alisei com progressiva os teus cachos largos, te levei na primavera pra Veneza e te enchi de sapatos de toda sorte - apesar de você só ter dois pés, como qualquer outro mortal. Estava mesmo tudo bem, Cecília, até que você ultrapassou o inultrapassável. Eu sempre te disse que você podia tudo, e que eu te amava com todas as minhas forças - talvez tenha sido esse o meu maior erro - mas que nunca, jamais encostasse na minha vitrola. E você, num dos seus ataques histéricos de menina mimada que não ganhou de presente a boneca do comercial - olhando desafiadora no fundo dos meus olhos incrédulos - enfiou o dedão imundo na ponta delicada daquela agulha. Por isso, minha querida, não há mais o que lamentar: engula esse choro pobre, pegue as tuas coisas vazias e vá se envenenar com cds baratos em outro lugar. Porque o meu Baby 1983, aqui, nessa Technics original, você não escuta nunca mais.

Sylvia Araujo

15 comentários:

Helcio Maia disse...

É...o limite do inultrapassável, a fronteira tênue entre o que se releva, face aos relevos, e o que não comporta renúncias, pois abre as comportas do não.
Será que o verdadeiro amor é vão??

Valéria Gomes disse...

Entendo bem isto, o bastante para dizer que tudo nesta vida tem limites. Nem mesmo o amor seria capaz de superar a falta de espaço e liberdade de preferências. Somos seres humanos, por isto precisamos aprender a somar e dividir. Concordando ou não com as preferências do outro, devemos respeitar os diferentes gostos.
Muito bom, Silvinha!!!

Beijos de passarinho!!!

Zélia Guardiano disse...

Show, Silvya!
Show!
Adorei o seu texto.
Você o conduziu muito bem . Adorei a gota d'água: esperava traição, e não foi o que aconteceu.
Excelente...
Grande abraço!

Anônimo disse...

Ah, que máximo! Vc tem o dom de nos prender, moça, adorei!

Beijo.

Fernando Belo disse...

voltarei para te ler mais. Um beijo

Juan Moravagine Carneiro disse...

Concordo com a Lara, mas devo confessar que eu apaixonado como sou por vinil, adorei a imagem!

abraço

Jorge Pimenta disse...

é incrível como seguras a linha do novelo de uma história e a deixas desenrolar, aos poucos, como que obrigando-nos a esticar os dedos para segurar as suas pontas e correr a casa toda até chegarmos ao gira-discos sagrado. acho especialmente poética a trivialização (que não vulgarização) das pequenas bagas que alimentam o amor. mas, porque este é vivido por homens, há limites e feagilidades. o elo mais débil estava justamente no gira-discos. porquê? talvez porque seja aí que toda a vida corre em pistas milimétricas alheia aos riscos e aos empenhos da gravação.
um beijinho!

Em@ disse...

Gostei muito, Syl.
Todos nós temos uma linha inultrapassável...e porque não uma vitrola?
beijo

Arnoldo Pimentel disse...

Seu texto é bom demais, gosto muito desse jeito que tem de escrever, de dar vida própria as palavras que passeiam dando emoção e sublinhando cada canto do texto.Parabéns e tudo de bom pra você.

Anônimo disse...

Boneca do comercial foi ótimo! rs
Ah sim, o amor é um equívoco!

Anônimo disse...

Nossa gostei muito desse seu último texto. Adorei as últimas frases: "Porque o meu Baby 1983, aqui, nessa Technics original, você não escuta nunca mais."

Beijocasss
Líria Jade

Marina disse...

Adorei, Sylvia! :)

Muito bom te ler.

Beijos!

Anônimo disse...

So digo uma coisa: Cecília continua sendo o alvo...

rs

beijos

JONNY Bg disse...

....o ruído gerado pelo contato do dedo com a agulha deve ter sido de ranger os dentes, um barulho daqueles que se sente no fundo da alma...pobre Cecília, deve estar arrependida até o último fio daqueles belos cabelos loiros por botar o dedo onde não deveria!

Shala Andirá disse...

Ai!
Saudade da minha vitrolinha Sony portátil amarela...