Foto do blog: Mario Lamoglia

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Adiante*

Abriu um vinho. Tinto e seco. De shorts e meias, colocou no aparelho de som a inconfundível trilha íntima das noites vazias, enquanto o líquido encorpado suspirava - sutil - dentro da garrafa esverdeada. Quando as primeiras notas começaram a escorregar pelos ouvidos, se enrodilhou no sofá puído de terceira mão, com as duas pernas dobradas por debaixo do corpo franzino. No mesmo canto de sempre - segurando o cachimbo amarelado e mordido, com o zelo próprio de quem se fez confidente - levou ao nariz a taça bordeaux pela metade. Inspirou os aromas harmoniosos com a suavidade de quem está habituado a reter em si o que há de melhor nas coisas, e em um curto gole permitiu que aquela elegante maciez - rica e aveludada - inundasse a língua e envolvesse o corpo num prazer único e deliciosamente aconchegante. Preencheu então as próximas horas com seus poucos pequenos prazeres, e se alimentou da sensação etérea de estar na melhor  companhia. Sorriu um sorriso branco simplesmente por compreender, enfim, que acariciar sua própria alma era o bendito-santo-remédio pra tanto sofrimento sem laço. O nó se desfez. Pelo vinho, pelo fumo, pelo fundo do poço que desenredou em si mesmo, se fez abraço. Nesse dia ele estava só. Mas apenas porque aprendeu a desfrutar da felicidade sublime de se perceber assim, sem ser dilacerado pela brutal e desumana solidão dos seus dias de morto.
Ele estava só.
Mas estava inteiro.
Sylvia Araujo





* Republicação por falta de tempo de postar um texto novo. Ainda sem computador. Ê, lerê! rs
Uma beijoca florida

10 comentários:

Leo disse...

Adorei, tomara que o computador volte logo, to adorando os textos.

Beijos beijos.

Valéria Gomes disse...

Este, você escreveu para mim?
É impressionante a maneira como me vi nessas letras e...
Bom, o importante é que dentre mortos e feridos, salvaram-se todos.

Beijo com gostinho de saudade!!!

Anônimo disse...

Uma constatação e tanto, coisa para poucos.

Posso dizer? Amei, de verdade!

Beijo.

Clarisse disse...

hm, tava sentindo falta de passar aqui e ver teus textos - mesmo que repetidos =)

Enfim, que o computador volte logo, né não!?

Beeijo !

Jorge Pimenta disse...

ora aí está: há coisas que fazem mais sentido a dois, mas seguramente que a autocomiseração tem de ser o limite máximo da capacidade de um copo. aprender a valorizar os momentos em que se tem por companhia apenas... o próprio (sempre são dois, verdade?) é talvez o maior desafio que se nos coloca sempre, pelo menos um par de vezes, ao longo da nossa vida. com ou sem vinho, mas sempre inteiro.
p.s. viste o filme "sideways"? oh, se não explora algumas das janelas que deixas entreabertas neste teu belíssimo post...
um beijinho!

lídia martins disse...

Intensamente doído.

Um beijo

Marina Cavalcante Lacerda disse...

Que palavraaas hein? Que palavras *___*
ESpero que voltes logo. Beijos!

Helcio Maia disse...

"reter em si o que há de melhor nas coisas..."
Nada mais sábio, incorporar o céu mais azul, o vento que cantarola, a chuva, que ameniza as dúvidas, o mar, o amar.
Gostei muito, voltarei outras vezes.

Anônimo disse...

"Pelo vinho, pelo fumo, pelo fundo do poço que desenredou em si mesmo, se fez abraço..."


Santo Deus!...louvada seja tua palavra!

Beijos, Tâmara!

Anônimo disse...

Gosto muito do jeito como você usa as palavras, ficou lindo mesmo esse texto.

Mas é triste pensar em gente que prefere estar só mas inteiro, bom mesmo é dividir e compartilhar.

Adorei o texto.

Bj
Líria
www.oquemeinferniza.wordpress.com