Foto do blog: Mario Lamoglia

domingo, 11 de julho de 2010

Securas


Ela sabe dos hojes. Antes que o sol desponte, que o calor aqueça, que a luz ofusque com tanto brilhar, levanta e repete incessante todos os passos de todos os dias. Ainda se assombra com a imensidão dessa sombra que lhe persegue os chinelos até o banheiro e de volta pra cama. Ainda tem medo da morte que ronda, que abraça e sufoca seus sonhos, seus planos, sorvendo seu ar de bailarina amputada com a lentidão malevolente dos carrascos. E ainda assim, tremendo, temendo, não revida; aperta estreito os olhos pequenos e franze com força a testa larga - os tantos fracassos rasgando estrada entre as sobrancelhas grossas. Camila costura desejos com linha solta desde que se entende por gente. E a cada passo um pedaço enorme de si despenca no chão - o corpo estremece. Espera ansiosa que a claridade desfaleça em rotina por detrás das cortinas e lentamente se esvaia, para que a escuridão se justifique em si mesma e não precise dar explicações pra tanto negrume que carrega no peito - pra tanto não no coração. Menina bonita em capa de chuva, respira ofegante entre insucessos e securas, porque nunca foi capaz de dar um laço. Jamais abriu sequer um tímido sorriso pra flor que desabrocha dançarina no jardim ou deixou que a brisa morna lhe beijasse os cílios e fizessem voar livres as mechas douradas dos cabelos soltos - é mais fácil viver de resmungos e não-ditos do que abraçar apertado as inconstâncias, e aprender vez ou outra com o dolorido das ausências. Cavando com as mãos compridas de unhas vermelhas roídas um buraco profundo e estreito, suspira cansaço e se deixa enterrar pela terra fecunda. Pra ver se um dia - quem sabe - vire raiz e renasça feliz; e seus hojes vazios-cinzentos desabrochem, enfim, em surpreendentes e coloridos amanhãs.

Sylvia Araujo

19 comentários:

Sonhadora (Rosa Maria) disse...

Lindo texto...a solidão sempre companheira.

Beijinhos
Sonhadora

Valéria Gomes disse...

Lindo, lindo, lindo!!!
Tão surpreendente quanto os demais que por aqui pude ler!
Parabéns, minha linda!!!

Beijos de passarinho no coração!!!

Ivan Bueno disse...

Sylvia,

A secura visitou nossas inspirações no mesmo dia, como você disse. Lá no meu blog e aqui!
Que texto lindo... lindamente triste e real.

Há muitas vidas assim e há, também, ao menos um pouco disto em nós, desse medo do viver, de abraçar-se às inconstâncias inevitáveisl. Tem uma "Camila" com a qual eu convivo todos os dias, e como é doído ver esta "escolha" na forma de viver em alguém tão próximo! E nunca é uma escolha consciente (pouquíssimas o são, se formos investigar à fundo), mas resultado de uma história de vida com algum trauma oculto e nem sempre relembrado.

Lá no meu poema falei de outra secura, mas o que faz evaporar é sempre o mesmo "ar".

Lindo texto. Depois leia lá no Empirismo o texto "Tênues Fios da Escravidão", que trata deste aprisionamento. O texto é de 09 de dezembro de 2009 (link: http://eng-ivanbueno.blogspot.com/2009/12/tenues-fios-da-escravidao.html). Trata sobre as escolhas que fazemos e muitas vezes achamos que estamos conscientemente no comando.

Este seu texto toca lá no fundo e revela em você uma visão impar, além da deliciosa escrita, como sempre.

Beijo grande,

Ivan Bueno
blog: Empirismo Vernacular
www.eng-ivanbueno.blogspot.com

Andrea de Godoy Neto disse...

Nossa, Sylvia! Também eu senti aqui o arrastar lento dos chinelos de quem tem a secura no peito e os olhos cegos pra vida.
forte esse texto, e de uma beleza que aperta o peito

beijocasss

AC disse...

Envolvemo-nos, para nos proteger, em paredes áridas e vazias, à espera que seja a luz a bater à porta. Não ousamos. Desvanecemos aos poucos, mas, vá lá saber-se este indecifrável milagre, ainda e sempre na esperança do brilho.

Beijo

Unknown disse...

Sylvia

Que bom te encontrar, que bomm poder ver, como o Ivan, a mina "camila" desvendada, compartilhada abertamente.

Poderia citar tantas passagens, mas fico com esta
"é mais fácil viver de resmungos e não-ditos do que abraçar apertado as inconstâncias, e aprender vez ou outra com o dolorido das ausências

é mais fácil viver de resmungos e não-ditos do que abraçar apertado as inconstâncias, e aprender vez ou outra com o dolorido das ausências

Puxa, não deixaram eu copiar...

Mas, é a que diz que é mais fácil viver assim....
Porém, intuo dia-a-dia que não é não. E acho que vc tbm!
Sorte, minha amiga!

bj da walll

Priscila Rôde disse...

" - é mais fácil viver de resmungos e não-ditos do que abraçar apertado as inconstâncias, e aprender vez ou outra com o dolorido das ausências."

Guardei comigo!

Zélia Guardiano disse...

Sylvia querida
Simplesmente maravilhoso o seu texto! Identifiquei-me demais com ele!
Você é mestra nesta ciência que é passar emoção...
Por isso, adoro vir aqui.
Enorme abraço, amiga!

Luna Sanchez disse...

"Costura desejos com linha solta..."

Que lindeza, isso...adorei!

Beijos, ótima semana!

ℓυηα

Moska de Bar disse...

Essas unhas vermelhas vão além, no vai-e-vem das palavras que tornam melhores os nossos olhos.
Te beijo

Insana disse...

Eu tenho sede da Sede Dele.

bjs
Insana

Cecília disse...

Seus textos emocionam, tocam profundamente minh'alma.
Um beijo enorme pra vc!

Salve Sylvia!!!

=)

Tania regina Contreiras disse...

Sylvia, em alguma de suas linhas certamente a gente se encontra. Um texto de uma beleza íntima.

"Camila costura desejos com linha solta desde que se entende por gente. E a cada passo um pedaço enorme de si despenca no chão - o corpo estremece".
Belo...real...qualquer um de nós está aí.
Beijos,
Tânia

Márcio Vandré disse...

Que a raiz seja forte para aguentar as intempéries.
Nutrientes.
Um beijo!

Mara faturi disse...

Quando a esperança se faz colorida,o caminho é abundante.Aqui verte poesia, a palavra bem regada tem aroma especial;)
grande bjo!

Sandra C. disse...

OI querida,
Encontrava-me aqui,mente perambulando entre corredores da madrugada que se estendia e pela fresta da cortina ao amanhecer se rendia. E tecendo caminhos no labirinto da escuridão a tua luz ao fim do túnel da rendição encontrei... Rendia-me a essa solitude cheia de presenças intangíveis e indesejadas, mas na companhia de tuas palavras esculpidas no mármore do meu olhar encontrei a arte do mais uma vez... Mais uma vez prosseguir, mais uma vez caminhar, mais uma vez encontrar o mais uma vez a buscar... Como é bom sermos tantas e em tantos tantas vezes nos achar!
(Lágrimas)

Abraços no coração

Barbara disse...

Entre a bailarina amputada e a raíz.
Pois flores - não se exijam delas as cores mas as texturas - as mesmíssimas das tuas palavras.

Anônimo disse...

Linda tua maneira de escrever e trazer a imagens, cheiros, sensações, sentimentos pra gente. Poxa, Camila tem que deixar esse medo de lado, abrir um sorriso em flor para a flor fazer um laço vermelho bonito cor de cereja e desabrochar em amanhecer colorido a cada minuto. Diz isso pra ela?

Bjim
Líria

Marcelo Novaes disse...

Sylvia,



Huuuummmm...


As unhas são importantes nestes textos. Com o bom ritmo de sempre!




Um beijo.