Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 13 de julho de 2010

Free *


Depois de um dia inteiro regurgitando fracassos, junto com o pastel de vento e o copo de refresco aguado que colocou pra dentro às nove da manhã, chegou em casa quase rastejando e se jogou no único espaço da casa onde não havia roupas e tralhas espalhadas. Num ato reflexo, abriu a bolsa entupida de dejetos e pegou o maço de cigarros amassado. Vazio. Virou a bolsa no chão e encontrou mais dois maços. Também vazios. Entrou em pânico. No meio do monte de papéis cheios de números sem nomes, canetas quebradas e cacos de vida, viu quinze centavos reluzentes. Levantou tremendo e caramujou até o quarto. Esvaziou cada uma das nove bolsas multicoloridas e contabilizou: doze centavos em moedas de um e cinco. Faltavam três. Três míseros centavos pra que conseguisse enfim pregar os olhos. Pegou cada calça das enormes pilhas de roupas que se perdiam em cima da cama e das cadeiras - uma a uma, meticulosamente. Nada nos bolsos, além de lixo e areia. Nem se preocupou em verificar de onde veio a areia, o que provavelmente tentaria explicar - ou compreender - uma semana depois, quando resolvesse organizar sua vida de uma vez. A única coisa em que pensava era que precisava de três centavos pra conseguir voltar a respirar. Em desespero, depois de revirar cada caixa, cada bolso, cada canto mais improvável da casa, resolveu colocar as moedas pequenas no bolso do short mais velho e curto da adolescência, e sair cambaleando pela rua vasculhando o chão. Na primeira esquina vislumbrou cinquenta centavos. Antes de sentir o alívio percorrendo a espinha, percebeu que a moeda não valia mais, como a maioria das coisas na sua vida de merda. Durante a volta no quarteirão escuro e vazio, encontrou - no meio de uma pilha de folhas úmidas quase apodrecendo - um círculo cor de bronze. Cinco centavos quase irreconhecíveis. Com seus preciosos trinta e dois centavos nas mãos suadas de unhas mal feitas, apressou o passo até invadir o boteco mais imundo e degradante de Vila Isabel. Do meio de montes de seres cambaleantes e fétidos levantou um dos braços e pediu ao português de bigode engordurado, com a caneta atrás de uma orelha e o ramo de arruda murcho atrás da outra: Um cigarro varejo, por favor. Entregou as moedas que tilintaram nas palmas enormes do sujeito, quase ao mesmo tempo em que puxava o isqueiro preso na corrente, ao lado do balcão, sem se preocupar com os valiosos dois centavos de troco. Foda-se o troco! Antes de abrir a porta de casa, depois de quatro longos e inebriantes tragos, a fumaça terminou seu trabalho. Sem escovar os dentes, pra não perder nem um único segundo do adormecimento causado pela nicotina, afastou as roupas, os medos e os sonhos, se enfiou debaixo do lençol puído e fechou os olhos, torcendo pra que o sono dessa vez chegasse rápido, mais rápido que a fome do corpo e do coração.

Sylvia Araujo




* Texto de 2008 parcialmente alterado.

26 comentários:

Helcio Maia disse...

Eu que não fumo, traguei cada palavra, sorvi parágrafo por parágrafo, compreendendo todo o drama de quem derrama a vida na calçada e se esquece de qual.
O consolo do vício, o vício de consolar-se sem sol, de conformar-se, sem forma, de desolar-se, sem dó.

Anônimo disse...

De verdade, seu blog é um dos melhores que visito! Vc escreve MUITO bem. Não costumo ter paciência para ler textos longos na internet, mas os seus eu leio e ainda fico querendo mais!
Parabéns =)
Um beijo =*

Anônimo disse...

Mais viciante é seu texto, nossa, muito bem escrito, Sylvia, como sempre!

Beijos.

Cecília disse...

Seus textos são uma coisa..
Salve Sylvia...

beijão!! =*

Fenda Flor disse...

Comecei a ler, mas tenho que sair.
Depois volto e te comento, não gosto de ler com pressa.
Já estou te seguindo e não vou perder teu rastro.
Até breve...

Moni Saraiva disse...

Eu odeio quando fico assim, sem ter o que dizer.

Ao mesmo tempo adoro.
O texto me invadiu. Num trago só.
Feito a fumaça do cigarro naqueles pulmões ávidos por qualquer ar, ainda que maléfico, que os renovassem. Algo que o simples respirar, jamais daria conta.

Amei, amei, amei!

Perfeito jogo de desesperos!

Beijos, Sylvia querida!

ítalo puccini disse...

sylvia,
cá cheguei por intermédio da moni,

e que delícia é teu texto! que condução maravilhosa. adorei adorei!

cá voltarei.

beijo!

Mary Pereira disse...

Menina, consigo sentir os fatos ao ler tuas linhas.

Fome insaciável essa de corpo e de coração. Adormece com o sono e ainda assim perambula em sonhos, fazendo-se notar.

Belo texto!
Um beijo.

Valéria Gomes disse...

Confesso que durante o tempo que lia teu texto, fumei um cigarro bastante aliviada por ele estar ao alcance das minhas mãos.
Muito bom!!!

Beijocas!!!

Andrea de Godoy Neto disse...

Sylvia, Sylvia...senti até o cheiro desse cigarro. E mais do que isso, a fome arrastando o corpo em (semi)vida.


beijocas pra ti

Jorge Pimenta disse...

a imagem do cigarro a consumir o que resta de vida (e não o contrário) é absolutamente perturbadora...
um beijo!

Jorge Manuel Brasil Mesquita disse...

Um belo conto entre fumaças de despejos e desejos de fumaças fumando a vida.
Jorge Manuel Brasil Mesquita
Lisboa, 14/07/2010
etpluribusepitaphius.blogspot.com

Luna Sanchez disse...

Doeu aqui.

Excelente, flor, como sempre, aliás!

Beijo, beijo.

ℓυηα

Nine disse...

Nossa, adorei!

Partece tão assustador, adormeçer para que o coração não começe a doer...

Parabéns pelo texto!

beeijO

A.S. disse...

Silvia,

Que delicioso texto!
A vida respirada até à última fumaça, como que uma flor que tenta sobreviver sem o matinal beijo do sol...

Sublime!

BeijOOO
AL

leila saads disse...

Sei exatamente o que é isso.
No meu caso é mais fumaça que nicotina, esse preenchimento temporário dos pulmões, de dentro.

Beijos!

Bruna Mitrano disse...

Nossa, muito bom!
Vou ali fumar um cigarro e já volto pra ler mais.

AC disse...

A ironia pendurada na ponta de um cigarro...
Denso, muito denso!

Bjs

Anônimo disse...

Adorei o texto, a descrição cena a cena.

Beijinho
Líria

Thales Willian disse...

Quando se vê já é um viciado, mesmo sem ver que o vicio chega, entra e toma conta...

Parabéns pelas belas palavras!

Érica Ferro disse...

A fome dela lembrou a minha. Como espero saciar toda a fome que há em mim, espero que ela também se sacie de tudo o que anseia.

Como a Luna disse: excelente, como sempre!

Beijo.

Insana disse...

Encantada.

Bjs
Insana

Leco Silva disse...

Num comentário rápido: você definitivamente (me) convenceu. A quê, perguntaria. Eu só aceitei. *rs*

Marcelo Novaes disse...

Sylvia,





Trama bem trançada sobre "free or not free".




Um beijo.

Dayane Pereira disse...

Isso é o que o vício faz com a pessoa. E com muitas mundo afora, e com drogas mais pesadas, com vicios bem piores. Bem retratado.

Juliana M. Mesquita disse...

Olá, Sylvia!
Cheguei até aqui porque você me adicionou no facebook. Só tenho a agradecer. Que lindo lugar. Eu tive tempo de ler apenas alguns textos por enquanto, esse especialmente escolhi para fazer o primeiro comentário.. há quase 1 mês não fumo, depois de 15 anos fumando. Mas não por isso. É realmente um espelho do recomeço, a fumaça faz falta para encobrir a bagunça que fazemos da vida. Obrigada por aparecer assim. Até breve, muita leituras pela frente :)