- É, fez sol. (Inevitável o sorriso no canto da boca - secosarcástico)
Ela fez de tudo pra tempestade que vinha esperando cair. Acordou sem dar bom dia aos gatos negros dos olhos melados, tomou um banho gelado e se postou nua - de frente pro espelho. Na cara, desgosto. Olhou. Se viu. Se absorveu. Aborreceu.
- Vai chover. Torrencialmente - desígnio que se deu antes mesmo de sequer abrir a fresta da janela.
Pegou a necessaire dos dias cinzas - aquela dos tons arroxeados - e espalhou na mesa suas cores de dor. Era luto o que sentia, e os olhos, a boca e os medos também sabiam da chuva. Sentiam. E foram, em ritual, se transformando escuros, marcados, doídos. Sorvendo em jejum o copo de água com limão, se olhou reflexo. Endureceu.
- Vai chover, trovejar, alagar.
Abriu o armário e foi direto pra gaveta dos esquecimentos. Estavam todos lá - intocáveis - os tecidos mais duros e coniventes de toda uma vida de entregas. Escolheu o que melhor combinava com as unhas vermelhas-descascadas enormes e pontudas, cultivadas especialmente para o encontro dos raios e trovões.
De sobretudo preto-imenso tampando metade dos rabiscos de morte multicores que gritavam na pele branca da batata da perna, sentou no canto do quarto. No chão. Colocou o coturno pesado como quem se protege da guerra, como quem nunca mais viu leveza. Com a cara e os cadarços amarrados com força, se fez nó - indissolúvel, intransponível. Levantou, pegou a bolsa cheia de dejetos e trapos e bateu a porta - certa da despedida.
- Já está chovendo, desaguando, desabando tudo; é sempre assim...
Mesmo de óculosescurosmaisescurosimpossível, sentiu a poderosa claridade assim que ouviu a primeira buzina, antes de atravessar o portão. E percebeu que - mesmo que queira e se prepare cuidadosamente para a chuva - quando o sol põe na cabeça de brilhar, ele vem. Não tem jeito. Fim.
Desordenada, encabulada e por fim divertida, largou os cinzapretos no canto da grade e saiu descalça, com a maquiagem pesada borrada pelos rios de incredulidade. Um sorriso de alívio, discreto, se fez notar nos lábios.
- É. Fez sol.
Sylvia Araujo
* Republicação com pequenas alterações.
17 comentários:
Faça sol ou faça chuva, nunca perdemos, não é mesmo.
Muito bom!!!
Beijocas!!!
mais uma pérola de sylvia..
rios de incredulidade se desmancham ante o sol que brilha,
beijo
Escrita típica feminina.
Nossa, o minuto seguinte é sempre um mistério, às vezes delicioso mistério!
Beijos
ai, a gaveta dos esquecimentos... onde a encontrar, querida sylvia?...
belíssimo texto! é sempre um gosto deixar os olhos perderem-se por aqui.
um beijinho!
É preciso estarmos sempre preparados para os dias de chuva e os dias de sol. Ou não. Ser pega de surpresa, às vezes, é tão bom!
Adoráveis as tuas palavras!
Voltarei...
Beijo doce!
Depois de um texto cinzento foi possível sentir o calor iluminar o fim sem maiores explicações, que se fazem desnecessárias diante do seu sol...
Minha querida
Um belo texto, temos que estar preparados para quando os dias mais escuros se fazem sentir, mas não é fácil.
Beijinhos com carinho
Sonhadora
"Me habitam multidões. Difícil é quando todos resolvem falar ao mesmo tempo"
essa frase é daqueles que nos fazem pensar: "gostaria de ter sido eu a escrever isto"
parabéns!!
abraços
dias de sair assim, descalça, de sorriso bobo a iluminar o rosto...
adorei !
beijocas
Sylvia é tão hábil com as palavras, e sempre com uma dose elevada de sentimento!
Muito bom ser tocado pelos seus textos!
Abraços! :)
Amigos blogueiros, peço desculpa, mas mudei o link do meu blog para evitar uma pessoa indesejada que, talvez por imaturidade ou inocência, começou a usar poesia minha sem colocar o devido crédito. Como mesmo após eu ter pedido que fizesse
não o fez, estou tomando esta providência para tentar impedir a entrada dele no meu blog como castigo e evitar assim que ele entre no de vocês, meus amigos, e fique utilizando pela internet seus pertences sem creditá-los. Meu novo link do Fenda Flor é:
http://fendaflorlyric.blogspot.com/
Obrigado pela compreensão e espero poder continuar dividindo com vocês nossas paixões aqui no blogspot, sem mais esse tipo de transtorno. Um grande abraço de
Bruno Tadeu Lopes
Arder na água, afogar-se no fogo
Bukowski
Bravo, bravíssimo, Sylvia, maga das palavras!!!
Texto simplesmente maravilhoso...
Tenha um lindo domingo!
Grande abraço
Muito massa seu texto.Preparando para chuva o sol sorri...
Muito lindo! Obrigado por dividir isso!
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