Foto do blog: Mario Lamoglia

sábado, 5 de junho de 2010

Gota

Tela de Salvador Dalí

Sai despenteada e apressada. Primeiro a filha na escola, depois o filho na natação. A Ioga fica pra depois. Volta pra casa, coloca a roupa na máquina, lava a louça da pia. Vassoura na sala, pano nos quartos, desinfetante no banheiro. Hora de buscar o filho na natação. Passa o uniforme, dá banho, comida, penteia os cabelos, deixa na escola com um beijo e um eu te amo. No ponto de ônibus lembra que precisa estender a roupa. Volta mais uma vez, pendura a roupa na corda, coloca as panelas na geladeira e, no portão - no exato momento em que as chaves caem no chão - percebe que está de chinelos. Verdes limão. Com a maquiagem já derretida entra de novo e coloca os saltos. Olha no relógio, já deveria estar na reunião. Desiste do ônibus, pega um táxi. Chega atrasada, dá boa tarde, escuta, organiza, propõe, resolve, indica. Fica aflita. É muita coisa e não há tempo. Delega, entrega e sai correndo. Hora de buscar os filhos na escola. Pega um ônibus, vai em pé. Hora do rush, engarrafamento. Abre um livro e vinte páginas depois desce na esquina. O salto quebra - estava demorando. Tira os sapatos, joga na lixeira e vai descalça. Pega os filhos, um beijo em cada um mais dois eu te amo, como foi o dia. Duas mochilas, mais bolsa de compras, laptop e pasta de couro. Quase não dá, mas tem que dar. Prepara a janta, ajuda no dever de casa, dá banho, conta uma história de dragões e princesas pra agradar os gregos e os troianos que dividem o mesmo quarto. Mais um beijo em cada um, dois eu te amo e um boa noite, durmam com os anjos. Apaga a luz. Respira. Descalça, caminha sem pressa até a cozinha. Abre a garrafa lentamente e escuta atenta o barulho do líquido estalando os cubos de gelo no fundo do copo. E aquela gota - não a mesma, outra - amarelada, reluzente, abrindo caminho pelo corpo transparente do vidro, caramujando em rolamentos circenses quase chegando ao rótulo avermelhado; aquela gota inteira, insistente, que magicamente a transporta para outro lugar. O lugar das maravilhas que, de tão mínimas, se tornam quase invisíveis aos olhos do tempo que escorre. E ela agradece por mais esse micro-poema que orvalha diante do seu rosto cansado. Porque enquanto a gota - aquela, não outra - estiver serpenteando garrafa abaixo e seu coração se mantiver atento à ela, sua vida já valeu a pena. E o amanhã será sempre outro dia.

Sylvia Araujo

18 comentários:

Ivan Bueno disse...

Adorei, Sylvia.
Que texto intenso, que tira o fôlego da mesma forma como o dia a dia de uma mãe-mulher-trabalhadora-multiuso.
Vai-se sem fôlego, mas com prazer, até o final, pois nesse corre-corre há, sim, prazer e amor, que aliás fica transparente na crônica.
Muito bom.
Beijo grande,

Ivan Bueno
blog: Empirismo Vernacular
www.eng-ivanbueno.blogspot.com

Érica Ferro disse...

Ela vive. Ela é uma grande mulher. Ela faz poesia todos os dias.

Gostei mesmo, querida.
Saudade de vir aqui te ler.
Um beijo.

Juan Moravagine Carneiro disse...

Realmente intenso...

Belo e intenso!

abraço

Taynara Irias disse...

Sempre enchendo os olhos e a alma com seus textos!

Ótimo!
Obrigada pelo carinho!

Beijos.

Unknown disse...

Silvia!

Fiquei sem ar e me vi no seu texto em tempos idos.

Toda essa agonia..... e depois as saudades.

Lindo!

Parabéns!

Beijos

Mirze

Anônimo disse...

Essas mulheres...

Respira! Respira!

Vocês são o que há!
Nós homens estamos beirando o produto descartável...rs

Beijo niña!

Em@ disse...

Vida de mulher...até que um dia rebenta!

beijo, Syl, e gostei muito desta super-mulher.

Andrea de Godoy Neto disse...

ufa!quase me deu canseira...rs

vida de mulher...que possamos nunca perder o encanto por cada dia, pela poesia que se desenha em todo gesto

gostei muito

beijos pra ti

Valéria Gomes disse...

Parabéns! Tudo isso, faz de ti uma mulher nota mil. Invejável disposição e fôlego.

Beijos de admiração!!!

Anônimo disse...

É bom amar a vida mesmo quando não se tem tempo para vivê-la.




obs:Você tem o nome da minha poeta preferida :)

Anônimo disse...

Ai o Tempo!...Esse senhor da dentes grandes, qual rato a roer meus calcanhares. Quase sempre estamos guerra. Eu o engulo, por afronta. Um dia, hei de me deitar em bela cama, e deixarei que me ame. Quem sabe assim, faremos as pazes.


Amo tudo aqui. simples assim

beijos meus.


Tâmara

RICARDO disse...

Lindo demais Sylvia!
Essa gota faz toda a diferença, é o x da questão, incógnita que não se decifra para os que olham e não vêem.
Bjos!

Jorge Pimenta disse...

há um conto de sophia de mello breyner andresen intitulado "o silêncio" que me saltou à memória assim que li esta tua "gota". lindos, um e outro, e em absoluta paridade.
um abraço!

Patrícia Gonçalves disse...

Moça, vc sempre me maravilha com seus textos. Literalmente mulher maravilha!

beijão

Arnoldo Pimentel disse...

Seu texto é maravilhoso, retrata bem o dia de uma mulher, com o tempo corrido, sem tempo para si mesma, só no final, já cansada.Parabéns, amo ler-te, tudo de bom pra você.

Viciada em você disse...

ser mãe eh bem assim..parece q nao vai dar mas tem q dar heheh adorei o texto

Nomundodalua disse...

Sylvia, vc já escutou "leila", delegião urbana?? escute..hehe
muito bom texto-cotidiano! :*

Helcio Maia disse...

Sylvia,
essas gotas de poesia e beleza - essas, não outras - trouxeram outras gotas aos meus olhos - esses não outros.
Obrigado pela bênção de palavras tão comoventes e inspiradoras.