Depois de guerrear mais horas que preciso, vem afrouxando o nó da gravata puída e desabotoando os punhos amarelos, cambaleante a caminho de casa. Mete a chave na porta e, quando pisa na cerâmica quebrada, pressiona a ponta do sapato surrado no outro calcanhar. Ato reflexo.
Pés descalços, larga a maleta lotada de papéis desimportantes em cima da única cadeira, puxa do bolso o maço amassado de cigarros e segue até a pia abarrotada de esquecimentos. Abre o frigobar vazio, apoia o copo de vidro lascado, enche de gelo até a boca e derrama o whisky de segunda - até cobrir a metade dos cubos.
Seu conjugado mede exatos cinco passos número 43 até a janela. Mais dois pra cada lado. Espaço suficiente para abrigar seu mísero ego de filho terceiro de mãe sofrida. Sôfrego por uma lasca de ar, segura com as mãos trêmulas o cigarro aceso e a poção mágica, e apoia os cotovelos no parapeito do mundo para observar o nada.
Abraça com força o silêncio pesado, enquanto rejeita todas as máscaras que se obrigou a usar durante o dia. Agora é noite. Já passou da hora de fazer alarde.
Repete a sessão cigarro-copo-parapeito até perceber o início da íntima dormência na ponta dos dedos e a aproximação dos sonhos bonitos. Satisfeito, abre o chuveiro no máximo e se afoga inteiro na água gelada, ao mesmo tempo em que cantarola baixinho a lembrança gostosa com cheiro de infância.
Quando deita no colchão antigo - exausto do tudo que foi, sem nunca ter sido - imediatamente encerra seus olhos turvos. Transbordando lágrimas secas e engasgos latentes, implora - com o peito aberto e os punhos cerrados - para não amanhecer vivo. Nunca mais.
Sylvia Araujo
11 comentários:
Sylvia, tô encantada com o realismo da tua descrição, de tal forma que se pode ouvir o passo sobre a cerãmica quebrada, o tilintar do gelo no copo e as baforadas de fumaça no parapeito...
Adoro ler assim, vendo a cena, reconstruindo com detalhes que, desautorizadamente, a gente imagina.
Adorei te ler. Estou seguindo. Vou estar sempre por aqui!
Beijos!
Ê, Moni...
Que prazer ter você aqui dividindo sentidos. A imaginação nunca fica parada na alfândega: ela pode tudo!
Beijoca pra você
Sylvia, que delícia de blog vc tem, vim retribuir sua visita tão amável e me encantei com suas palavras, volto mais vezes, beijos da janela.
Gosto muito do teu estilo e a maneira de ver a vida, que transborda disso tudo que descreveu maravilhosamente bem, linda !!!
nossa senhura de apairicida!! que coisa texto texto coisa ...muito bom!! estou ate com alergia pelo mofo do conjugado!! muito bommm!!! muito .... hoje a minha tarde vai ser outra ..ter lido tuas palavras mudaram meu iminente destino ..pouco ..mas destino ao fim..obrigado ..
Ô, Ulisses, obrigada pelas palavras doces. Sinta-se acarinhado.
Oi, Flávio!
Fico feliz que essas palavras tenham entrado no seu mundo. E que elas dancem e se misturem à outras e mais outras, às minhas, às suas, à todas as palavras do mundo!
Um beijo giga
Muito bom o texto, as nuances de reconstrução do cenário... mas, convenhamos, hein? Que carinha deprimido! Eu no lugar dele tocava uma p... no banho e relaxaaaaaaaaava... Hahahahaha!
(perdõe a grosseria, mas eu sou mais pragmático que esse "filho de terceira" aí, foi mal).
Garota... que dizer? Tô bege... =]
hahahaha Você definitivamente não existe, Alsan.
Beijo!
Flor do meu jardim,
Você não precisa dizer nada. Seu abraço vale mais.
Agora?
Sylvia, ainda bem que você comentou no meu blogspot porque assim,pude ter acesso a seus textos lindos! sua sensibilidade me toca, é bom saber que não estou sozinha de alma nesse mundo...Juliana
Oi, Ju!
Fico muito, muito feliz que tenha gostado dos meus escritos. Essa troca de sentimento é boa demais. Estamos juntas nessa. rs
Meubeijopravocê
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