Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Cantare


Cantava, invisível. Da garganta oca escapulia um blues rasgado, a dor imensa a evaporar dos muitos vincos. Pés descalços, no meio-fio andava - a pele escura em cacos; os sonhos, poucos. Arrastava os curtos passos e cerrava firme os olhos, enquanto o grave gravitava fundo na caixa ecoante e rompia em fúria os poucos dentes-muros. Toda uma vida de ausências sacolejava dentro da pequena bolsa em remendos. Tantos desditos-incertos explodiam no fundo daqueles olhos tão secos. Nas mãos rachadas, os rabiscos de todos os ontens. Eu senti seu medo, seu desespero, seu desconforto - confesso: eu me afoguei. E entendi, depois dos intermináveis minutos em que estive ali, observando, inerte, que todos somos invisíveis uns dias, muitas, várias vezes. A diferença é que alguns de nós cantam - a melodia a marcar, canina, o breve território da existência - enquanto outros apenas seguem, exasperados com o próximo passo, incapazes de ouvir sequer os seus próprios lamentos.

Sylvia Araujo

5 comentários:

Valéria Gomes disse...

Sempre show!!! Amo muito isso aqui!!! Beijo apertadinho no coração, Sylvia!!!

Unknown disse...

Complicado este texto. Gostaria de entender.

AFROdite in versos disse...

Ola, adorei as cores e os sabores desse seu cantinho. Assim que o tempo permitir, volto para mais um passeio por aqui.
Abraços!
Sobre esse seu texto, fantástico! Reflete bem o modo como levamos essa dança que é a existência.Muitos não matam sua sede, pois não degustam o gole.Estão sempre atrás do próximo gole e do próximo...

O Maltrapa disse...

Gostei desse seu texto. Ficou uma beleza lê-lo em voz alta!

Abraço do Maltrapa

Thiago Nuts disse...

"Mas, nós só sentiremos pena de você ao ver toda riqueza reluzir.
Nas coisas que você não sente."
(Eu luto - Natiruts)

É assim que tem que ser.
Show!