Foto do blog: Mario Lamoglia

domingo, 31 de janeiro de 2010

Mais uns dias


Acordou com aquele gosto familiar de mel nos lábios. Tateou - depois de meses - o buraco que deixaram lá dentro as canções que ele sussurrava pros seus olhos vermelhos, naquelas noites tão secas de chuva. A ausência daquele incorruptível coração na bandeja - logo pela manhã - nunca lhe fez tanto mal. Ao menos isso ela sabe.
Fazia tempos que não remoía momentos. Nem recorda quando foi que o cheiro dos cubos milimétricos de manga madura deixaram de assaltar seus  bons-dias. Olhos no teto, se deu conta de que nunca antes havia pensado nisso tudo, desde que ele se foi.
Por isso, não conseguiu perceber com nitidez se as lágrimas gordas chegaram pra lhe dizer que ele faz falta, ou se era ela mesma que precisava urgente se despir na frente do espelho, pra se enxergar melhor.
Com as sobrancelhas grudadas uma na outra, se arrastou até o armário do banheiro, colocou umas três pílulas coloridas embaixo da língua e voltou a deitar.
Talvez fosse melhor esperar mais uns dias.

Sylvia Araujo 

Quem?

"- Seja sincera, Soninha!
- Claro.
- Como é que você veio parar aqui?
- Eu?"


Pedro Antônio de Oliveira faz mágica aqui

Pros pés


- Mãe, me empresta o seu chinelo?
- Te empresto as minhas asas. Serve?
Sylvia Araujo

sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Hoje me exaurem os excessos.

Sylvia Araujo

Pois sim

Foto: Tiago Santana

"- Será que chove, Primo?
 - Capaz.
 - Ind`hoje? Será?
 - `Manhã.
 - Chuva brava, de panca?
 - Às vez...
 - Da banda de riba?
 - De trás."

Regionalismo brilhante de Sô Guimarães Rosa, em Sagarana.

O cheiro de cigarro de palha embolado com o de vento de chuva ficou impregnado nas minhas ventas. Nas suas, não?
Êta, hômi porreta!

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Santidade

" Sentada
com as pernas em cruz
largou-se feito louca
jurando que era santa,
e provava o milagre
a quem lhe pagasse pra ver:
tirava leite de pedra,
água de pau, melaço de carne,
e prometia o paraíso
a quem lhe alcançasse
o céu
da boca"
Raissa Bonfim

Renata Luciana entrega bonito assim aqui.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Sabedoria


Ele não decifra letras quando se agrupam, desde que nasceu. Me disse um dia - nos seus trinta e poucos - que sempre venerou a vírgula, mesmo sem poder chamá-la. Falou, com propriedade, que o ponto inspira a sabe-tudo - por isso lhe torce o nariz. O que não remete ao infinito, não quer mais pra si - só leva agora consigo o que tem cheiro de mar.
Quando lhe apontei as reticências, passou a vagar pelo mundo pintando três pontos em todo lugar.
Esse agora é o seu nome.
Esse se fez o seu lar.

Sylvia Araujo

sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

Almíscar



Numa noite quente de um Rio de Janeiro abafado e úmido, chegou como sopro de brisa fresca. Trajava roupas fluídas, muito claras - quase ofuscantes. O tecido transparente bailava no meio da pista lotada e ditava o ritmo da música. Aos poucos, seu magnetismo atraía os olhares incrédulos. Não era possível enxergar seu rosto, mas era fácil decifrar sua expressão. Ela sorria.
Com os braços abertos girando em torno do tronco - em movimentos de ondas - espalhava um perfume almiscarado, criando uma atmosfera em suspenso. Os corações pulsavam em um mesmo compasso - o que seus pés descalços marcavam no chão. Não se viam seus olhos, mas todos sabiam que estavam cerrados, ávidos pela energia que jorrava de dentro. Um a um - deixando de lado suas falsas histórias - os sorrisos foram nascendo, os cílios fechando, os braços se abrindo e os corpos rodopiando...
No auge do transe ela se foi, evaporando sutil em seu corpo de vento. Seus respingos de vida - cheirando a almíscar - pairavam agora entre as vagas que brotavam dos braços ondulantes, e beijavam cada lágrima liberta que escorria.
Ela sorria.
Mas dessa vez, de olhos e alma escancarados.
Sylvia Araujo 

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Apreço



Quando as ideias escapolem às palavras,
Emudeço.
Recém inauguro um mundo seguro,
Sem tropeços traduzíveis.
As topadas que dou hoje
Não têm letras.
Nem som - nem cor -
Nem tampouco textura de dor.
Elas têm é cheiro de além -
Além-mar-azul-bem-doce-tenro,
Sem frases feitas ou efeitos crus.
Quando as palavras escapolem às ideias,
Não mais pereço.
Vivencio o apreço de estar enfim
Em mim.
Sylvia Araujo