A criatura já virou estátua, múmia ou qualquer coisa que não se mova sem vento. Parece que brotou lá, no âmago do boteco mais imundo que já vi na vida, surgindo soberba do meio das engulhantes poças de cerveja-insone e suor-mal-cheiroso.
Com cabelos em pleno incêndio, entupidos de laquê endurecido, despenteados com todo o zelo pro alto, mas bem pro alto mesmo, ela nem pisca. Olha adiante, embora me pareça amordaçar o passado a todo instante. Ela grita sem emitir um único som.
Não sei como ou quando se aninha, nem em que condições vai embora, mas é certo de que ofusca os olhos de quem passa a qualquer hora, estupidificada que se faz por paetês, balangandãs e cintilantes afins, pleno sol à pino. Dos pés à cabeça ela reflete.
É tanta ruga, mas tanta ruga, que a maquiagem pesada faz crosta no meio dos sulcos. E o batom, nem precisava dizer, corre confuso pelos tons de vermelho: sangue, cereja, morango, chaga aberta. Isso, quando não se faz perceber camadas sobrepostas de todos eles juntos - uma cicatriz sentada na outra.
Tem sempre uma cerveja aberta, já reparei, um copo cheio e uma companhia - que nem sabe seu nome e está sempre de costas. Nem deve ter nome. Sequer ser chamada. Tampouco parece respirar, ou sorrir, ou chorar.
Toda vez que passo por sua mesa cativa, meu coração procura por ela. E ela está invariavelmente lá, implacável, em seu mundo distante. Em um mundo próprio de brilhos e sonhos.
Toda vez que passo por ela, ela vai embora comigo.
Toda vez que passo por ela, ela se deixa levar.
Pra qualquer lugar.
Sylvia Araujo
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