Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Deslembrança

Num desses dias de verão, sentindo na pele escorregadia o calor viscoso que subia do asfalto durante o susto da chuva inesperada, fiquei parada ali, na esquina da rua vazia, com um dos calcanhares apoiado na quina imunda do meio-fio, os cabelos encaracolados já meio esticados encharcando aos poucos, a blusa de algodão quase sem cor prestes a admitir uma transparência beirando a indecência e as lentes dos óculos acumulando, impassíveis, um monte de micro-gotículas arredondadas cor-de-chuva. 

Não me lembro muito bem porque estava parada exatamente ali, naquele lugar, mas sei que observei horas a fio, quase compulsivamente, as gotas pesadas e urgentes formarem poças enormes e se esparramarem em rios, do meio pros cantos do chão esburacado. É impressionante como a prefeitura não dá a mínima, mas disso a gente já sabe, pras crateras enormes que se formam e aumentam a cada dia mais aqui onde eu estou agora, que é onde eu estava quando chovia e de onde não me movi nem um passo desde então, sei lá onde isso fica ou de que maneira eu vim parar aqui. 

A questão é que, assim como a prefeitura, os donos dos carros de todas as cores e tamanhos e anos, com IPVA quitado ou não, não importa, também não dão a menor bola pros buracos, muito menos pra chuva, forte ou só aquela finíssima cortina incolor, que se foda, e eu me lembro como se fosse hoje, que nesse dia passavam quase voando, com a ansiedade própria de quem tem aonde chegar. Eles, comprovadamente, pode observar, têm mesmo muita pressa quando chove e, como sempre diz a minha mãe, quando a tempestade resolve dar o ar da sua graça, naquele dia chovia à cântaros. 

Eu estava vendo tudo, desde o início, e me mantive muito atenta aos carros, todos eles, que corriam como loucos carregando pra longe uma ou duas pessoas, às vezes três, que inevitavelmente embaçavam os vidros fechados com as suas respirações asfixiadas e quentes como o verão. As rodas, que ninguém via porque estavam afogadas em tanta água, nem eu, que estava ali alerta há tanto tempo que nem me lembro quanto tempo foi, abriam apressadas uma estrada no meio do rio do meio da rua e, quando sumiam na esquina alagada, deixavam pra trás um rastro de cor, no tom exato da lataria do carro, misturado com o tom dos meus olhos marejados, mais o tom da chuva branca às vezes quase-azul. 

Eu não sei te dizer no que eu estava pensando enquanto me mantinha parada ali. Na verdade, nem sei te dizer se estava pensando em alguma coisa, qualquer coisa de concreto, ou se simplesmente eu era só um vazio em pé, debaixo da chuva forte, misturando as minhas lágrimas salgadas àquela água adocicada que caía do céu, esmaecendo as lembranças, deixando de ser qualquer coisa que um dia eu já tivesse sido por mim ou por alguém. 

O fato é que fiquei ali, com o meu all star branco lentamente acinzentando pra combinar com o céu que era muito cinza, que era quase preto nesse dia estranho, observando e vivendo a chuva, o asfalto, os buracos, os carros, e eu te juro que não me resta nada além de uma vaga lembrança de que talvez, e eu digo talvez porque os fatos me faltam e só me restar imaginar os porquês de todo esse equívoco, aquele tenha sido o dia em que eu finalmente decidi que iria me esquecer de vez.

Sylvia Araujo

3 comentários:

Noslen ed azuos disse...

eu ñ sei se conseguiria esquecer, depois deste texto, adoro quando vc escreve pra chuva!

bjs
ns

Mara faturi disse...

Saudades de te ler;)
Bjo grande!

Arnoldo Pimentel disse...

Quando paramos no tempo, assim desse jeito, e observamos tudo à nossa volta podemos chegar a conclusão que a indidualidade e o esquecimento caminham juntos.Beijos