Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Às moscas



Diante do álbum amarelecido pelos anos de clausura na gaveta dos esquecimentos, espantei-me ao ver radiante aquele garoto mirrado. Ostentava, do alto do trono da infância, um sorriso branco e sincero - ainda que incompleto e distante. Já não me recordava daquela felicidade sem pretensões. Daqueles olhos translúcidos, daquele peito aberto - daquele eu sem medo. Esbocei incrédulo, frente à fotografia gasta, um meio sorriso oblíquo. Não pelo que sou hoje - esse velho decrépito, lacrimejante de ontens em preto-e-branco - mas pelo menino inteiro do qual me vesti nos anos idos. Pelo que poderia ter sido e fracassei, acovardado. Por aquele que - pelo acaso dos passos na mata fechada dos sentimentos daninhos, que me atormentaram anos a fio - desencaminhou-se e perdeu-se para sempre de mim. Uma lágrima gorda atravessou-me os vales vincados do rosto. E apreciei, salivando, seu gosto amargo. Como quem arranca de uma vez um naco de vida dos dias mais verdes. Como quem inspira 50 anos de árvore em um só segundo. Eu não queria ter amadurecido. Poderia ter evitado as moscas asquerosas, flutuantes sobre a minha decomposição. Ainda assim, apodreci.


Sylvia Araujo

18 comentários:

AC disse...

Há balanços doridos, cruéis, como se víssemos o escoar do tempo na nossa incapacidade...
Belo e profundo.

beijo :)

maria claudete disse...

Dói ...É inevitável ...MAS a corrosão da alma é pior que a do corpo. Beijos no coração.

Valéria Gomes disse...

É assustadora a ação do tempo sobre a fragilidade do corpo e inevitavelmente, sentimos na alma o gosto do golpe. Parabéns, Sylvia!!! Amo as suas letras!!!

Beijos de passarinho!!!

Anônimo disse...

Oi, Sylvia.

Que texto maravilhoso! Essa imagem da fotografia amarelada pelo tempo é muito forte, né? Eu sempre engasgo quando me deparo com ela, pq sempre me vem na mente uma foto antiga do meu pai... (ele já see foi...)

Enfim... magnífico!
Beijos, querida!

Mario Flecha disse...

É um tempo de balanço, de olhar pra trás e sentir que se acumulou viver. O menino está na outra margem do rio, acena, vive e faz lembrar o que naquele tempo era possibilidade e no agora não é mais. Não é preciso ser muito idoso pra sentir isto. Qualquer um por volta dos seus 40 já começa a fazer estes balanços. O que fazer com a vida dali pra frente é uma grande indagação. Quem tem espera na terceira margem pra além daquela?

Sândrio cândido. disse...

A dualidade da alma e do corpo, o que permanece do corpo, nada, más a felicidade ainda insiste no nosso interior.
saudações.

Moni Saraiva disse...

Quanto tempo sem te ler...saudade disso!

E que texto fantástico. Lembrou-me Chico. Esse poder de se travestir de um outro ser, de sorver sentimentos - alheios ou não - mas de criar diante de quem lê um ser tão real, que bem podia estar fazendo esse balanço de vida bem aqui, ao meu lado, ou mais ainda, dentro de mim.

Palavras fortes, descrições viscerais... Tinha que vir de ti!

Lindo, lindo!

Beijo grande!

Moni

Állyssen disse...

Seus escritos sempre transpondo a gente de universo... talvez ao próprio universo interior... eu não gostaria de ter crescido, agora, amadurecer, já não sei se isso aconteceu.

Beijo!

Álly

ítalo puccini disse...

todo rompimento dói. deixa marcas.

gostei muito de teu escrito!

tem poema lá no um-sentir :)

beijos!

nydia bonetti disse...

"50 anos de árvore em um segundo" Sylvia, você descreve tão bem o que ando sentindo. Época de balanço por aqui. A árvore permanece - meio cansada, mas ainda brotam alguns poemas - está viva. :) Beijo!

Lua Nova disse...

Não fossem as fotos, não nos lembraríamos com tanta nitidez que um dia sentimos "aquela felicidade sem pretensões. Não nos lembraríamos "daqueles olhos translúcidos, daquele peito aberto - daquele eu sem medo." E se nos contassem, duvidaríamos.
Esse texto me fez chorar. Talvez seja época de um balanço... mas não sei se estou pronta, nem se um dia estarei...
Beijokas.

Lua Nova disse...

Sylvia...

No dia 4 de outubro, fiz uma postagem no meu blog de um texto seu "F(r)io" e deixei um convite pra que vc passasse lá. Não soube se vc passou, mas gostaria que passasse, visse como ficou e me dissesse se vc gostou.
Qualquer coisa, avise-me.
Beijokas.

A postagem foi neste blog
http://empoucaspalavrasalheias.blogspot.com/

marden disse...

Dá licença!? Olá!
Cheguei a pouco e sinto vontade de ficar! Gostei daqui.
Procurava algo pra significar um poema escrito agora a pouco, uma imagem. Pesquisava "sideral", "abissal", "nebulosas", "estelar", antimatéria"... resolvi: "rarefeito"! Achei! Entrei naquela onda e aportei aqui! Saudações do caos!

Marden

Sobre o escritos seus... lendo todos! rs
Prazer.

Lídia Borges disse...

Cheguei aqui por acaso. Um feliz acaso, pois o que acabo de ler deixou-me aquele sabor a "quero mais"

O amadurecimento é fruto do tempo, mas pode ser parcial, isto é, feito de corpo não de "espírito".

L.B.

Sonia Pallone disse...

Pra quem escreve bem como vc, até mesmo uma maça apodrecida serve de inspiração...Lindo texto, repleto de uma nostalgia dolorida, até. Bjs e parabéns.

Alyne Rubio disse...

Vim dar meu pitaco pois merece e muito! Grande beijo e muito sucesso! :)

Priscila Rôde disse...

Muito forte o texto! Intensidade é a sua marca!

Divino!


Um beijo,

da fã! rs

Juan Moravagine Carneiro disse...

Belo texto...

abraço