Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A velha e a puta

Esticou o braço delgado para o ônibus e, ao mesmo tempo, em um improvável malabarismo, tentou encontrar as moedas perdidas no fundo da bolsa enorme de couro cru. Além do peso no ombro esquerdo, todos os dias ela carrega na outra mão uma pasta  cinzenta cor de chumbo que, pela sensação desconfortável de ardência na lombar, deve pesar, no mínimo, uns três quilos e meio. Clara é recém formada no curso de Letras da Universidade Católica e, além do trabalho em três escolas municipais, revisa e traduz textos em inglês. Sua vida, nos últimos tempos, tem sido levar papéis para todos os lados, o tempo todo.  Mas existe um porquê:  seu apartamento próprio de dois quartos na zona sul, de frente pro mar, estará quitado em dois anos, de acordo com os seus cálculos, graças ao seu esforço e à mesada gorda que o pai ausente deposita na sua conta poupança todo dia cinco.

Sentada no banco do meio, do lado do motorista, todos os dias repete o mesmo ritual. Apoia a pasta pesada no colo, abre a nécessaire bege, tira dela o pequeno espelho rosa em formato de coração e se olha nos olhos com complacência. Ajeita os fios loiros e finos na trança comprida meticulosamente repartida, passa pó compacto no rosto  branco com um pincel largo de cerdas curtas e espalha um batom quase imperceptível nos lábios rosados. Um suspiro. Dois. Guarda tudo na bolsa, puxa a meia calça na altura das coxas, ajeita a saia nos joelhos e a gola da blusa impecavelmente passada, esfrega a ponta dos dedos nas laterais dos sapatos lustrosos e abre um livro, que só é fechado na esquina de casa.

Nesse dia, no ponto seguinte, na altura da Voluntários, subiu  as escadas do ônibus, com  considerável dificuldade, uma senhora obesa de cabelos  curtos ensebados, trajando um jardim de maxiflores multicoloridas, do pescoço atarracado até o meio das canelas cabeludas. Depois de se arrastar lentamente pelo corredor estreito, desabou ao seu lado, ofegante. Lambendo os fios do bigode escuro lotado de gotículas de suor amarelado, perguntou, numa fala entrecortada e ríspida, se Clara poderia fazer o obséquio de ocupar menos espaço, para que ela pudesse caber também no banco. Solícita, Clara fechou o livro com o indicador marcando a página e, timidamente, se desculpou, tratando de espremer seu corpo franzino de miss entre a velha e a meia janela rachada imunda.

Sem agradecer, a mulher observou por alguns instantes a capa do livro em suas mãos de dedos finos e esmalte transparente e, com um olhar que fez a espinha da garota gelar e seu corpo tremer inteiro em um arrepio incontido, perguntou:

- Bukowski?
- É... - respondeu Clara, quase com medo.
- Gosta?
- Sim.
- Puta. - grunhiu a velha, entredentes.
- Como?
- Puta. Vagabunda, perdida, biscate, rameira.
- Desculpa? A senhora está me ofendendo? - perguntou, sem conseguir acreditar no que ouvia.
- Se lê Bukowski, e gosta, é puta. - cuspiu enraivecida a gorda, já se levantando para sentar duas cadeiras atrás.

Com as ofensas inesperadas rodopiando dentro da cabeça, Clara segurou o espelho de novo e se olhou demoradamente. Deixou que cada uma daquelas palavras preenchesse todo o espaço da boca e as repetiu para si mesma, uma a uma, observando, cautelosa, cada movimento labial no reflexo do coração rosado: Puta. Vagabunda. Perdida. Biscate. Rameira. E sorriu. Arrancou o elástico que prendia a ponta dos cabelos sedosos e soltou a trança perfeita com os dedos compridos. Limpou a boca insossa com as costas das mãos e tirou da nécessaire o batom vermelho, aquele que tinha comprado na revista da Avon mas nunca teve coragem de usar. Abriu os dois primeiros botões da camisa e encurtou a saia, dobrando o cós até que ela chegasse ao meio das coxas bem torneadas. Levantou do banco exalando um cheiro rascante de fêmea e, consciente do poder que carregava nos quadris, ao avistar a velha senhora piscou um dos olhos, a língua úmida desfilando abusada entre os lábios carmim, enquanto puxava a corda presa no teto. Em cima do salto, desceu e seguiu. Inteira puta. E magnanimamente feliz.

Sylvia Araujo

13 comentários:

Vinicius disse...

Sylvia,
Esse seu conto está totalmente incrível,totalmente Rubem Fonsequiano mas ao mesmo tempo de uma originalidade ímpar . Dizer que está muito bom é uma tremenda de uma sacanagem: Tá Massa Real(como diziam os bahianos tropicalistas em tempos idos).

Vinicius

RICARDO disse...

Bucowsky é a essência do "desvairismo" e da "putaria" publicada.Como adepto do mesmo só tenho a elogiar(uma vez mais)seus escritos.Vc é Foda!!!!
Poderosa!!!!
Bjos!
Ricardo

Jorge Xerxes disse...

Sylvia, Excelente Conto! Um Deleite de Leitura. É sempre assim, essas putas velhas não se enxergam: inveja pura! Beijo, Jorge

Valéria Gomes disse...

Que saudade!!! Nem é preciso dizer que está bom demais, você já sabe, né!

Beijo no coração!!!

Soraya disse...

E entre as palavras ditas e as não ditas da velha com cheiro de gordura e pêlos ainda se pode ouvir nos ecos insistentes quando o ônibus para no sinal: "Ai que inveja de você, sua puta!!!"

Soraya disse...

E Puta quil pariu!!!
vai escrever bem assim lá...
Bjões
Soraya

Anônimo disse...

:)

muito bons, saudades de vc, parceirinha :)

beijos e fique bem,
G

Marcelo Novaes disse...

Oi, Sylvia!


Se houver interesse em guardar a entrevista que vc me deu, eis o blog:


http://marceloconversacom.blogspot.com/





O bloco de Notas foi deletado, e este será também. Em breve.




Um abraço!

Thiago Nuts disse...

Também gosto de almoço nu. É bom quando vem assim, cuspido.
Parabéns.

Sândrio cândido. disse...

Gostei muito da forma como conduz as palavras, principalmente a virada que acontece após o dialogo, que já no titulo nos dizia
abraços

Drakenhein disse...

10! A Epifania de Clarice e também, como ela mesmo disse: "Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas."

Cynthia Lopes disse...

Te achei Sylvia!
e adorei...
bjs

F. Reoli disse...

Sorte de quem encontra-la pela frente. Beijo.