Foto do blog: Mario Lamoglia

sexta-feira, 6 de maio de 2011

Expressamente, amor.

Ela gira a maçaneta e afunda o pé direito no carpete vermelho.
A mesma sandália de ontem, reparo.
A mesma bolsa, a mesma calça - o mesmo rasgo na coxa direita.
Não é a mesma, hoje. É outra.
Enfeitada de inteireza, vem sinuosa, lânguida.
Atravessa a porta, silenciosa, e mistura seu cheiro de fêmea ao gosto árido do meu cigarro ao meio.
Parece enevoada, suspensa, etérea.
Eu observo a maneira como mexe nos cabelos ondulados e umedece os lábios finos.
Seus dedos compridos de unhas malfeitas carregam, impressas nos movimentos, as formas de um corpo maior que o seu.
Seus braços de bailarina estão mais expansivos.
Os gestos, enérgicos, cheios de vida.
Ela transpira sexo selvagem.
Expõe tatuagens temporárias no pescoço, no rosto.
Seu respirar entrecortado soluça a eternidade de um sublime gozo.
Fecha os olhos e suspira, como se ainda estivesse estirada sob o úmido peso do amor.
Puxa a cadeira da mesa do canto e pede um expresso em xícara quente.
Na espera, seus olhos cinzentos se perdem nos abstratos tortos da parede branca.
Eu me perco nela.
Reparo no movimento sensual com que rasga a ponta do pacote de açúcar com os dentes e lambe os dedos melados.
Vejo seus lábios rosados entreabrirem e tocarem, suaves, a borda da xícara fervente.
Sinto na língua ávida a temperatura aveludada do seu café.
E o calor daquela boca imunda, tomada toda de outra boca qualquer.
Tenho em mim seu tremor intenso na cama larga.
No corpo febril, me apossam seus espasmos intermitentes.
Levanta de repente e toma o último gole, já morno, de pé.
Dobra um guardanapo ao meio e deixa que ele absorva a gota acobreada que se dependura no canto estreito da boca.
Eu vejo quando abandona a xícara, quando abraça a bolsa, quando se despede das lembranças sem olhar pra trás.
Eu vejo quando vira as costas e parte de um ontem cálido, pisando confiante em um amanhã só dela.
Ultrapassa a porta mais mulher e vai.
Eu fico.
E me levanto, e seguro com a ponta dos dedos o seu desprezo no papel manchado.
Enfio no bolso da calça os sentimentos amassados da noite felina que ela decidiu esquecer.
Levo comigo seus beijos, seu gozo, seu gosto.
Para que nunca me esqueça daquilo que nunca vivi.
Para que, ainda que nunca mais volte, ela jamais parta daqui - de dentro mim.

Sylvia Araujo

5 comentários:

Robs disse...

Pelo agradecimento sem ao menos ter deixado uma única palavra, já valeu por ter "deitado" meus olhos em tão belos pensamentos.
Adorei seu blog. Lindas palavras carregadas de um cotidiano tão suavemente sonhado por todos nós. Grande beijo!

Sândrio cândido. disse...

Gostei silvia.
beijos

maria claudete disse...

Impressiona a descrição de pensamentos pormenorizados nos mínimos detalhes vizualizados com tanto realismo. Parabéns Sílvia é prazeroso ler o que você escreve.

Daniela Delias disse...

Como é bom te ler!!! Bjo!

Carol Freitas disse...

Tua escrita tem corpo, e eu adoro essa coisa que pulsa...

Mto bom!