Foto do blog: Mario Lamoglia

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Primeiro amor

No meio de um dia turbulento, cheio de afazeres e dores, entrou na fila do ônibus, naquele ponto final infernal. Fazia um calor escaldante, e a chuva fina molhava seus pés sempre calçados em sandálias baixas de tiras. Vivia, nesses últimos dias, com os pés úmidos e sujos de lama. Vivia imunda.
Nunca se aborreceu muito com os pingos, porque nasceu avessa à guarda chuvas - melhor deixar que a água regasse seus dias, era o que sempre pensava. Andava árida. E estéril. De uma histeria heróica, que se mantinha até em dias de paz. Que as gotas lavassem seus ânimos e limpassem seus medos - ansiava aflita, a cada nódoa na roupa.
Em pé no ônibus lotado, atravessava a cidade de ponta a ponta, todos os dias, incansável. Nunca pensou que talvez não fosse seu destino cumprir essa cor em rotina - eram brancos seus hojes. Seguia no mesmo ritmo inalterado o cronograma enfadonho a que se destinou, sem ao menos desviar o olhar. Ou os pensamentos vazios.
No meio do esmagador engarrafamento da Avenida Brasil, às sete horas da noite - horário de verão - sentiu. Afim de confundir seus sonhos, cheirou a manga suada da camisa que pendia do braço levantado, mas, assim que levantou o rosto marcado, ele veio - avassalador. Aquele cheiro inconfundível. Aquele cheiro do primeiro amor.
Fechou os olhos e permitiu que as lembranças - uma a uma - dançassem sob seus cílios, envolvidas pelo odor estonteante da juventude. Se viu formada, com uma boa casa e com as contas em dia. Com sorriso fácil e o coração tranquilo.
Puxou a corda - que gritou estridente - e abrindo espaço entre o mar de gente com seus braços enormes, alcançou o mundo. Debaixo da chuva rala gargalhava enlouquecida, e correndo - com os passos mais largos que já deu na vida - foi atrás de si mesma e se encontrou.
Ela, o seu primeiro amor.

Sylvia Araujo

2 comentários:

Ana Maiz disse...

amei:

Sylvia Araujo
Apaixonada pelas sensações. Pelas cores, cheiros, texturas... Pelos sons e sabores da vida. Meu desejo (mais que secreto) é reinventá-los. Todos - Quiçá o mundo!

mt bom :)

Ana

Sylvia Araujo disse...

Oi, Ana!

Obrigada pela visita! Venha sempre, viu?
Beijoca