Quando as primeiras notas começaram a escorregar pelos ouvidos, se enrodilhou no sofá puído de terceira mão, com as duas pernas dobradas por debaixo do corpo franzino. No mesmo canto de sempre - segurando o cachimbo amarelado e mordido, com o zelo próprio de quem se fez confidente - levou ao nariz a taça bordeaux pela metade.
Inspirou os aromas harmoniosos com a suavidade de quem está habituado a reter em si o que há de melhor nas coisas, e em um curto gole permitiu que aquela elegante maciez - rica e aveludada - inundasse a língua e envolvesse o corpo num prazer único e deliciosamente aconchegante.
Preencheu então as próximas horas com seus poucos pequenos prazeres, e se alimentou da sensação etérea de estar na melhor companhia. Sorriu um sorriso branco simplesmente por compreender, enfim, que acariciar sua própria alma era o bendito-santo-remédio pra tanto sofrimento sem laço. O nó se desfez. Pelo vinho, pelo fumo, pelo fundo do poço que desenredou em si mesmo, se fez abraço.
Nesse dia ele estava só. Mas apenas porque aprendeu a desfrutar da felicidade sublime de se perceber assim, sem ser dilacerado pela brutal e desumana solidão dos seus dias de morto.
Ele estava só.
Mas estava inteiro.
Sylvia Araujo
2 comentários:
lugar favorito de minhas andanças quixotescas...
ótimo!
Ande, desbrave, mas volte pra uma visitinha de vez em quando, né?
Beijo!
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