Foto do blog: Mario Lamoglia

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Adiante

Abriu um vinho. Tinto e seco. De shorts e meias, colocou no aparelho de som a inconfundível trilha íntima das noites vazias, enquanto o líquido encorpado suspirava - sutil - dentro da garrafa esverdeada.
Quando as primeiras notas começaram a escorregar pelos ouvidos, se enrodilhou no sofá puído de terceira mão, com as duas pernas dobradas por debaixo do corpo franzino. No mesmo canto de sempre - segurando o cachimbo amarelado e mordido, com o zelo próprio de quem se fez confidente - levou ao nariz a taça bordeaux pela metade.
Inspirou os aromas harmoniosos com a suavidade de quem está habituado a reter em si o que há de melhor nas coisas, e em um curto gole permitiu que aquela elegante maciez - rica e aveludada - inundasse a língua e envolvesse o corpo num prazer único e deliciosamente aconchegante.
Preencheu então as próximas horas com seus poucos pequenos prazeres, e se alimentou da sensação etérea de estar na melhor companhia. Sorriu um sorriso branco simplesmente por compreender, enfim, que acariciar sua própria alma era o bendito-santo-remédio pra tanto sofrimento sem laço. O nó se desfez. Pelo vinho, pelo fumo, pelo fundo do poço que desenredou em si mesmo, se fez abraço.
Nesse dia ele estava só. Mas apenas porque aprendeu a desfrutar da felicidade sublime de se perceber assim, sem ser dilacerado pela brutal e desumana solidão dos seus dias de morto.
Ele estava só.
Mas estava inteiro.
Sylvia Araujo

2 comentários:

inutensilio disse...

lugar favorito de minhas andanças quixotescas...


ótimo!

Sylvia Araujo disse...

Ande, desbrave, mas volte pra uma visitinha de vez em quando, né?

Beijo!