Foto do blog: Mario Lamoglia

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Engarrafado

Subo os degraus do ônibus com dez reais na mão. Sou a primeira a entrar e dou de cara com uma pequena e irritada fila à minha frente. Três passageiros do ponto anterior ainda aguardam o troco, impacientes. O motorista sua em bicas, sentado ao lado do motor fervendo, mangas de camisa e pernas de calças, feitas de um tecido barato e sintético, arregaçadas até as juntas cansadas. O sol de janeiro tem castigado e, apesar das promessas, o coletivo não tem ar condicionado, como em nenhuma linha dessa companhia, que atravessa inteira a esquecida zona norte da cidade. Aparentando pouco mais de 50 anos, vastas rugas penduradas pelo duro rosto retesado, diariamente dirige um carro com mais de trinta passageiros, aperta um botão que abre e fecha portas dianteiras e traseiras, outro que libera a roleta, dá trocos e informações de itinerários, regula a elevatória para cadeiras de rodas, faz um esforço medonho  para se manter atento ao engarrafamento insano das quase sete, aos sinais de trânsito, ao barulho insistente da cigarra a cada 300 metros, além de carregar na cabeça e no peito suas dores pessoais e intransferíveis - todos temos nossos próprios fardos, afinal, por mais que queiramos não dá pra fugir. Na minha vez de passar a roleta ele explode, as veias do grosso pescoço vermelho saltadas em alerta: "só fico mais essa semana aqui! Não aguento mais dar trocos e dirigir ao mesmo tempo! A vontade que dá é de largar o carro na rua e ir embora!" Eu lhe dou razão, todas do mundo. Digo que é desumano, que ele está certo, que R$ 3,40 é um roubo para a bosta de serviço que eles prestam, que o cartel das companhias de ônibus quer mais e mais lucros em cima da saúde física e mental de quem precisa do emprego, que demitir trocadores e sobrecarregar motoristas é realmente cruel e não tá certo, e tá tudo muito, muito errado mesmo, oras! Ele respira um pouco mais aliviado, parece, passa a pesada marcha com as mãos calosas e segue, determinado, o denso fluxo. Já sentada no banco colado à janela, observo distraída as vidas que passam lá fora e a minha respiração entrecorta. Não é mais tão difícil entender porque alguns motoristas do único ônibus que me serve para chegar ao trabalho passam direto do ponto cheio toda manhã, deixando alguns furiosos passageiros apressados e atrasados a ver navios. Decidi, então, andar alguns metros pra trás e esticar o braço de um ponto mais vazio. Eles sempre param lá.

Sylvia Araujo