Foto do blog: Mario Lamoglia

segunda-feira, 21 de junho de 2010

Dos espantos


Na hora exata em que seus olhos vivos se preparam para se pôr - nem um minuto a mais a escorrer pela noite - Maria sorri em lábios de cereja madura, no alto de um galho esparramado de arbusto. Dançam serelepes - embonecadas em vestido de chita - as lembranças de um hoje feliz, embalado pra sonho em folhas de outono. Sonho de menina em travesseiro fofo de penas, é coisa que enche o peito e faz doer de ausência coração de adulto - por isso ela não usa salto. Não é que não queira ter abraçados os pés descalços com as tiras e as fivelas da estação. É que não vê mesmo sentido em crescer mais cinco centímetros que seja, além daqueles que forçosamente fazem sua pureza escorrer, cascateando pelas mãos. Maria "é adivinhação de criança, quase ciranda incandescida por uma estrela".
Faz tempo que aboliu os espelhos dos dias. Passou a medir sua meninice pela quantidade de laços de fita que cabem alvoroçados no meio dos babados fartos - encompridados de propósito até as canelas finas. Pra evitar que suas pernas esguias se descompassem e esqueçam da música que escoa do tempo, todas as manhãs ela pega pela mão as palavras, e as leva pra dançar. Assopra com força ao vento forte do inverno todos os porquês que carrega no estômago - é essa sua fome de espantos que faz com que todos os sentidos lhe dêem boa noite, todas as noites escuras sem lua. Ela não vive sem eles. Rodeados de cheiros, sons, cores, gostos e minutos felpudos, seus dias nada mais são do que presentes enormes e surpreendentes, embrulhados com o papel mais brilhante de todos, à sua espera em cada amanhecer na beirada da cama. Repletos de matizes e belezas, cheinhos de vida e alegria, eles se entregam inteiros a ela. Maria, bonita que só, carrega bem dentro um coração de criança. E é só por isso que ela sonha tão pequeno-enorme assim.

Sylvia Araujo




PS: Com um beijo na Luciana Marinho, do Máquina Lírica, que me soprou a ciranda incandescida, dando vida e poesia à minha Maria. O link dança no meio do texto, de mãos dadas com as outras letras bailarinas.

14 comentários:

Helcio Maia disse...

...cheiros, sons, cores, gostos e minutos felpudos... é o "must", a sensação táctil em tudo que a rodeia, numa gigantesca roda, que dá sentido aos sentidos, que a ela vêm saudar.

Caminhos Poéticos disse...

"Um amigo vem e segura a sua mão ou te abraça. Não perca essa oportunidade - porque Deus veio na forma da mão, do abraço, na forma do amigo".

(Osho)

Beijos de coração prá coração...M@ria

Leo disse...

Adorei o texto querida amiga, e esta frase é bonita demais
"E é só por isso que ela sonha tão pequeno-enorme assim."

Te beijo!

Patrícia Garbuio disse...

Amei,vc escreve lindamente,suave!
Parabéns pelo texto.
bjsssss

Valéria Gomes disse...

Está formidável esta Maria! És encantadora na arte de escrever!


Beijos de contentamento!!!

Zélia Guardiano disse...

Simplesmente maravilhoso este seu texto, Sylvia! Cada palavra , uma bolinha de sabão, soprada com delicadeza... Encantou-me!
Enorme abraço, minha querida!

Tiago Moralles disse...

Meninice, como gosto dessa palavra.

Jorge Pimenta disse...

na tua escrita, as palavras definem os contornos de frutos macios e doces sorrindo aos olhares com palato que os desejem. belíssimo o texto!

Noslen ed azuos disse...

...é suas palavras desfilam em minha imaginação igual um sonho bom.

bjs para vc's
ns

Unknown disse...

Olá, Sylvia!

Belíssimo texto, como sempre! Tu teces palavras como sonhos desenhados em nuvens...!

Contenta-me deveras encontrar as palavras aladas de minha querida Luluz aqui!

Beijinhos,
Ane

BECK, Juliano disse...

Tua forma de poetizar, assim com narrativa, é demasiado bela!
=)

Lìria disse...

Adorei demais isso de lábios de cereja madura, dá vontade de cereja... lindo texto, de uma leveza impressionante. Muito bom te ler Sylvia.

Líria

Luciana Marinho disse...

encantada!
lindas marias e cecílias!
quanta vida poética há por aqui!

beijos, flor.

Andrea de Godoy Neto disse...

Sylvia, essa lindeza de texto tem gosto de doce, das cerejas maduras da moldura...que delícia!!!

mas, mais de tudo, me apetece a fome de espanto, esta que também faz roncar minha alma esfomeada...e que encontra tanto alimento aqui

um beijo enorme