Foto do blog: Mario Lamoglia

sexta-feira, 18 de junho de 2010

(In)conjugável


As palavras me cicatrizam, instantâneas feito ópio. Ou talvez uma dose cavalar de morfina, que amortece displicente os lobos cerebrais - certeira como a lágrima que se arremessa impávida do alto da face, pouco antes do inevitável endurecer do coração. Não existem meios de me desnudar dos medos e anseios, sem permitir que frases inteiras-atropeladas me irrompam libertas do útero em chamas. Mesmo que eu as mantenha militarmente algemadas aos sentimentos mais inúteis, elas me jorram altivas e incontestes. Não há como manter o respirar cadenciado sem que a maldita tela, de algum maldito computador, seja lentamente preenchida pelas dores e os amores que me invadem e escorrem incessantes, todos os dias.
Escrever é minha libertação. E a mais sufocante das clausuras. Minha incoerência e militância. É ao mundo que esbravejo febril os gritos lancinantes, desesperados e insanos da fera enjaulada em seu próprio peito. É ao outro que suplico cuidado com o que me vaza e esvazia - porque isso é tudo o que me resta. É lá - bem lá no meio das tantas folhas soltas e desconexas que me revelam - que sucumbem exaustos os poucos pedaços mais preciosos de mim. Os que me são e os que me ausentam. E ainda aqueles que - não sendo nem um, nem outro - vivem de almejar uma identidade, qualquer que seja ela; como um vulto que aguarda ansioso o breve mas caloroso aceno, sentado imóvel diante da janela de um trem que parte sem olhar pra trás. E assim, como quem se resigna diante de um mal irremediável, segura constato que é, sim, no contorno delicado e dolorido dessas letras latejantes que me encontro - feito rosto que reconhece as suas próprias marcas em olhares alheios. E que, neste materno aconchego de ninho aquecido pelos verbos mais inconjugáveis - invariavelmente - me perco. Com os poros famintos e o peito escancarado.
Sempre sorrindo e sangrando.
Di  la   cer   ando.

Sylvia Araujo




PS: Com um beijo enorme na careca brilhante do Sara-Mago das palavras. Ficamos aqui abraçados com as suas deslumbrantes letras e com a saudade apertada dos muitos mundos que ainda estavam por vir. Ainda bem que palavra alada é imortal. 

"Se tens um coração de ferro, bom proveito.
O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia."
José Saramago

7 comentários:

Jorge Pimenta disse...

só quem tem o coração de carne e sabe sangrar sabe morrer e viver um dia após o outro. nas palavras, pelas palavras... agora pelos silêncios que sobram das palavras que jamais emudecerão.
um beijinho para ti, sylvia! uma lágrima-sorriso para saramago!

Valéria Gomes disse...

Ainda bem que as palavras são eternas. Este é o único conforto para a saudade e lembranças.
Bom tê-la de volta!!!

Beijos no coração!!!

Arnoldo Pimentel disse...

Olá minha amiga, você sabe que amo seus textos e seu blog e venho aqui agradecer aquela poesia, porque aquele comentário é uma poesia, e fiquei muito feliz mesmo, tanto que postei abaixo da poesia em meu site e no blog do grupo que participo, não coloquei título, mas sua autoria, se você puder visite o blog e deixe um comentário em sua poesia, tem um comentário meu nela convidando você a fazer parte se puder do nosso grupo, abaixo vou colocar meu site, o blog do grupo, vc pode conhecer, tem também matéria sobre o lançamento do meu livro com fotos dos poetas, ficaremos felizes que venha conhecer nosso blog e quem sabe nos presentear com sua participação em nosso grupo cultural.

blog do po-de-poesia
po-de-poesia.blogspot.com

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e o blog do poeta Marcio Rufino, do po-de-poesia

emaranhadorufiniano.blogspot.com

Tire um tempinho e conheça nosso espaço.

Beijos no coração e tudo de bom pra você.

Noslen ed azuos disse...

...és bonita a vida dita ou escrita, descrita... grita e chora tais palavras da vida q vai 'ou do outro lado já com Saramago' alegre semblante de paz.

bjs
ns

Saramago humanista-ateu, graças a Deus.

.maria. disse...

a palavra também é de carne, e bate e sangra. todo dia. belo post. abraço!

Luciana Marinho disse...

sempre com palavras pulsantes, cheias de vida, de transbordamentos... e a bela homenagem a saramago!

beijo, querida!

BECK, Juliano disse...

Lindo texto, principalmente o trecho "Não existem meios de me desnudar dos medos e anseios, sem permitir que frases inteiras-atropeladas me irrompam libertas do útero em chamas."
Eu também estabeleço relações promíscuas com as palavras, são todas minhas amantes, me aliciaram...

Abraço!