Foto do blog: Mario Lamoglia

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Mimetismo

Fechei os olhos e fui embora pro meu canto de pássaros e águas correndo. Me empoleirei na árvore frondosa, me espalhei em seus muitos braços, desapareci. Agora sou caule, folhas, seiva bruta - estou silêncio admirado da grandeza do verde, do profundo espelho do lago. Trago em mim os vazios do mundo inteiro, pra encher - gota a gota - dos mais delicados gorjeios. Sou ventre em asas, sou céu.

Soul
música
muda.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Vácuo de repentinas faltas

Naufrágios. Fome de terra firme - ganas de ar queimando a garganta muda - afogamentos. Nas costas curvadas, milhares de quilos, ausências. No horizonte, milhares de pântanos, litros de vastos mares - nos cabelos, âncora. Um vácuo cheio de repentinas faltas, estúpidos faleceres e memórias rotas pulsando debaixo da pele: eu arranho a derme, arranco os vermes, soluço o vírus, o sangue contaminado, o pouco suspiro. O susto de um breve sorriso oblíquo, de quem não tem medo - e ainda assim treme (e teme o frio) - me enregela. A espinha eriça e as pupilas vagam, foscas. É pesado o punhal que atravessa o tanque e faz escorrer o viscoso óleo da vida. É brilhante a lâmina, é quase espelho. E quando a ferrugem se esparrama feito hera sobre a labiríntica maquinaria do coração, e a maresia emperra o respiro inconstante dos parcos desejos, são meus olhos chovendo sal - mais nada. Sou eu, desespero puro, me agarrando aos restos - as ondas crescendo, a cada segundo maiores, enormes, negras, pesadas, brutais. Sou eu, meus mesmos e inesgotáveis naufragares. Sou eu, insistente naufrágio em mim.

Sylvia Araujo

terça-feira, 6 de dezembro de 2011

Suspiro de uma nota só

Quarenta anos. Um pouco mais, talvez, mas não passava dos quarenta e cinco, disso estava certa. Os olhos diziam muito mais - eles sempre dizem muito mais do que a boca ou o corpo almejam - e traziam séculos dependurados nas bolsas escurecidas, que faziam moradia bem embaixo daquela beleza arredia. Eram bonitos sim, eram muito bonitos aqueles grandes espelhos cor de mel derretido. Mas por algum motivo, fugiam, perdidos, ela sabia. Escondidos detrás daquela cortina espessa e leitosa, eles sorriam uma tristeza bonita, de quem escorre e morre com fome de vida, de quem maldiz a sorte e deseja com todas as forças um amanhã reluzente de sol. 

Debruçado no balcão, de pé, ele virava um copo atrás do outro - as lembranças afogadas no líquido amarelado, o soluço asfixiado pela espuma branca. Ela, serena, de longe observava. Chegou até mesmo a ver, em uma micro fração de segundo, uma lágrima tímida e transparente que ameaçava, insistente, se lançar do parapeito ciliado. E acompanhou, atenta, os movimentos enérgicos imediatos dos braços, os gritos exasperados, a gargalhada enfurecida de quem descaradamente se aproveita da falta do meia-direita - em atacante do time de outro estado - para exorcizar seus próprios fantasmas, congelar seus próprios demônios. Ninguém percebeu o tanto de ausências que escondiam aqueles muitos excessos, mas ela, do meio do seu próprio buraco, assolada pelo dolorido reconhecimento da falta, avistou e doeu junto.

Em algum instante, que nunca-jamais saberão precisar, por conta do tamanho atordoamento daquele enfrentamento, se olharam. Subiu bailarino pelo pescoço esguio dela, tomando todo o seu corpo rígido, um cheiro  intenso e árido de desejo e medo. Um gosto de culpa, de auto-flagelo, de fracasso certeiro lhe amortecia a língua seca - ela virou o copo quase cheio, sem desviar dos olhos dele. Queria engolir aquela dor. Queria tomar pra si, fazê-la abraçar-se à sua, se derramar inteira. Queria dizer do amor. Levantou da mesa e se aproximou - os olhos mudos e úmidos a denunciar seu gesto contido. Bem perto, enquanto os cansaços se fundiam em um único suspiro de uma nota só, abraçaram-se com força - dois desconhecidos que se sabiam como ninguém. Olhando-se bem dentro, os dois precipícios amedrontados a entrelaçarem as lembranças e os futuros incertos, brindaram o amanhã - hasteada, tremulava a esverdeada esperança bonita, em um sorriso branco e feliz.

Sylvia Araujo

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011



Que a minha falta de ausências nunca afete os meus afetos.

(é tudo sempre o tempo todo em mim)

Sylvia Araujo

Bisturi




O pudor castra(a)dor de ser.

Sylvia Araujo

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Cantare


Cantava, invisível. Da garganta oca escapulia um blues rasgado, a dor imensa a evaporar dos muitos vincos. Pés descalços, no meio-fio andava - a pele escura em cacos; os sonhos, poucos. Arrastava os curtos passos e cerrava firme os olhos, enquanto o grave gravitava fundo na caixa ecoante e rompia em fúria os poucos dentes-muros. Toda uma vida de ausências sacolejava dentro da pequena bolsa em remendos. Tantos desditos-incertos explodiam no fundo daqueles olhos tão secos. Nas mãos rachadas, os rabiscos de todos os ontens. Eu senti seu medo, seu desespero, seu desconforto - confesso: eu me afoguei. E entendi, depois dos intermináveis minutos em que estive ali, observando, inerte, que todos somos invisíveis uns dias, muitas, várias vezes. A diferença é que alguns de nós cantam - a melodia a marcar, canina, o breve território da existência - enquanto outros apenas seguem, exasperados com o próximo passo, incapazes de ouvir sequer os seus próprios lamentos.

Sylvia Araujo

domingo, 27 de novembro de 2011

Carmim


Eu não sei. É que alguma coisa tá fora de ordem, tá fora de órbita, tá fora do rumo - sem prumo - me ajuda. Alguma coisa é muito longe assim, tão perto-dentro e eu não sei. Eu juro que não sei, me explica? Não, não tenho medo do escuro, é sério. Essa luz carmim, acesa o tempo todo, enfim, é só pra ver arder o muro alto - medir seu destamanho, enfrentar meu desconcerto. Você pode apagar o facho, se me envolver bem apertado nos teus braços, beijos: e eu te prometo nunca mais tentar fugir de mim.

Sylvia Araujo

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Crença, bença

Não. Não há cheiro, não. Há só um medo esparramado e morno que me diz das coisas que nunca me foram. É só um frio na espinha curva que sobe e desce, me tonteia, escapa. É caso sério esse amor tão grande. E ele ri quando respiro o não, cria covinhas se desacredito. Um riso livre, de fazer barulho, gargalhada pura de criança nua - a boca toda lambuzada - é mel. E eu lhe dou as mãos numa ciranda a sós, nos revelamos luas sem usar desfeitos. Ele sabe ser - o amor - maior! Eu pra sempre aprendo seu enlarguecer. Lá, no meu coração, danado faz ninho, caminho, soluço, maré-lua-cheia, me faz ser inteira. Longe ou bem perto, me oferece no cálice um sopro, um gozo danado de bom: nunca deixe de me acreditar. E vá.
Sylvia Araujo

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Ânsia


Chove
na rua
na carne
aqui dentro.

(e essa novembrância
a me arrebatar 
silente
feito 31
em final dos tempos)

Sylvia Araujo

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

(In)existência


Me impulsionam pelas matas densas pés descalços de curta vida. Pouco mais de trinta anos me embrulham frouxos o corpo sedento.  Sobre os dedos calosos, cortados, equilibra-se em patético malabarismo o expressivo peso da minha vontade - cambaleando, sigo. No início do caminho estreito, uma encruzilhada e um hoje-branco, estatelado em oferenda. Então, me deixo arrebatar pelo perfeito momento-presente eternizado em nesga de sol e aqueço. Esqueço os medos e esvazio dos meus tantos vãos. Sou agora só desejo escancarando os poros e esfregando pelo corpo inteiriço a felicidade suprema de estar exatamente naquele lugar. E estar quem estou. Da grama úmida, a certeza do incerto borbulha, amortecendo os passos. Sorrio. Inexisto na lembrança de uma veracidade inventada e desconstruo. Um suspiro rodopia altivo nas entranhas do nariz e me assopra curto recado do rio: siga. Frágil, pressinto aturdida o arrebatamento das águas negras- revoltas, mas os planos já estão desfeitos. Não há meias-voltas - me resta ir além. O rio que lateja em mim murmura: é pouco ainda, eu estou em toda parte. E quando irrompe inteiro nas veias, arrastando em enfurecida pororoca minhas tantas exatas exatidões, me faz rio. Inundada, so(u)rrio em incurável e irreversível deságue.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 24 de outubro de 2011



Viver.

(do verbo cachoeirar-se)

Sylvia Araujo

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Fotografias

Engoliu o gesto ávido com pressa - o coração enxovalhado gritando o atalho que não deveria seguir. Um desconhecido e frio suor sulcava riachos, escorrendo em volúpia pelas mãos trêmulas. Na garganta, emparedada, uma estranha sensação de reconhecimento e intimidade formigava. Não é possível - pensou. Os olhos negros giravam nas órbitas durante o dolorido e profundo suspiro, que inchava lento e pausado a caixa toráxica lotada de impotências. Os dedos largos quase arrancando furiosos os fios ondulados e escuros sobre a testa. As pernas compridas, frenéticas em espasmos, entonteciam, escorraçando o desejo latente. Não é possível - grunhiu.  Cerrou os dentes, disposta a assustar os fantasmas. Não se permitiria exacerbar em seu mundo tão concreto e passível. Não se disporia a sonhar - que de sonhos já havia morrido demais. Fechou os olhos na intenção de negar os próximos passos, mas instintivamente estendeu os braços, enquanto o vento morno e suave atravessava as cortinas fluídas e lhe acariciava sutil o pescoço esguio. Sentiu o beijo, o toque, o sexo úmido. E aquela presença maciça a dedilhar profundo seus mais inalcançáveis segredos. Num rompante, cravando as unhas afiadas no dorso largo e viril do impossível, gemeu.

Sylvia Araujo

domingo, 16 de outubro de 2011

Cálice

Dão rasantes sobre minha cabeça palavras-asas abertas. Montes delas, de todas as cores, em letras garrafais ou miúdas, sobrevoam inquietas em silêncio cúmplice, olhando-se pasmas, reverenciando suas ralas verdades, bajulando e lambendo seus reles saberes. Desdenham de mim - pobre de mim - que não lhes dou ouvidos. Acredito que queiram me dizer algo, mas não há bocas para expressá-las no meio desse céu cinzento. E não desejo que falem. Calem-se! Que me saboreie o silêncio do mundo. Eu me quero cega. Nesse instante em que grito e dilacero por dentro, me desejo entranhas. Não me venham falar de flores, enquanto rumino espinhos. As letras são minhas agora - só minhas, saibam - e somente as que escolho a dedo povoarão meu cálice. Nelas estão a cura de todas essas feridas abertas. São minhas, e é de meu direito permitir que queimem, que ardam, que sangrem. De onde escorre o fel, brota também o antídoto de todo o mal que me corrói. Eu sou a lama e o sol que endurece o charco. Eu sou o medo e a coragem de ir além. Eu sou a dor e o maior amor que já tive na vida. E não descansarei um segundo sequer, enquanto em mim não reinar a paz e o seu absoluto e incontestável vir a ser.

Sylvia Araujo

terça-feira, 4 de outubro de 2011

Luminescência

Não é preciso mais que pés no chão - a terra úmida fazendo vingar o amor por entre os dedos. Do mundo, em mim, lateja a inspiração eterna da simplicidade em flor. Do que necessito pra me encher de coragem e ir: do mar sem fim, desse imenso céu brotado de estrelas, do verde mato alumiando os dias, do vento morno e nu - que leva embora pra sempre tudo que não me cabe e sobra. No peito, bem guardado, carrego o segredo do tanto em quase-nada. E a certeza de que sou a revolução que hasteia minha própria bandeira. De que sou o vivo amor - e que, por ele, respiro e pulso.     
Sylvia Araujo

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Ah, Clarice...

"O caminho que eu escolhi é o do amor. Não importam as dores, as angústias, nem as decepções que vou ter que encarar. Escolhi ser verdadeira. No meu caminho, o abraço é apertado, o aperto de mão é sincero. Por isso, não estranhe a minha maneira de sorrir e de te desejar tanto bem. Eu sou aquela pessoa que acredita no bem, que vive no bem e que anseia o bem. É assim que eu enxergo a vida e é assim que eu acredito que vale a pena viver."

Clarice Lispector


Enquanto emudeço, ela diz por mim. E como diz bonito, a danada!

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Oferenda aos ventos


Obrigada, minha nova estrelinha, por ter sido o ser humano especial que você foi. Criatura querida, zelosa - figura amiga. Uma das pessoas mais íntegras, justas e incríveis que já conheci - de quem sempre tive orgulho, por ter o mesmo sangue correndo nas veias. O meu "eu te amo" pra você é eterno.

Abra as asas, meu primo, que a imensidão dos céus agora é toda sua.


À Renato Scher - in memorian.

sábado, 17 de setembro de 2011

Amém.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

A velha e a puta

Esticou o braço delgado para o ônibus e, ao mesmo tempo, em um improvável malabarismo, tentou encontrar as moedas perdidas no fundo da bolsa enorme de couro cru. Além do peso no ombro esquerdo, todos os dias ela carrega na outra mão uma pasta  cinzenta cor de chumbo que, pela sensação desconfortável de ardência na lombar, deve pesar, no mínimo, uns três quilos e meio. Clara é recém formada no curso de Letras da Universidade Católica e, além do trabalho em três escolas municipais, revisa e traduz textos em inglês. Sua vida, nos últimos tempos, tem sido levar papéis para todos os lados, o tempo todo.  Mas existe um porquê:  seu apartamento próprio de dois quartos na zona sul, de frente pro mar, estará quitado em dois anos, de acordo com os seus cálculos, graças ao seu esforço e à mesada gorda que o pai ausente deposita na sua conta poupança todo dia cinco.

Sentada no banco do meio, do lado do motorista, todos os dias repete o mesmo ritual. Apoia a pasta pesada no colo, abre a nécessaire bege, tira dela o pequeno espelho rosa em formato de coração e se olha nos olhos com complacência. Ajeita os fios loiros e finos na trança comprida meticulosamente repartida, passa pó compacto no rosto  branco com um pincel largo de cerdas curtas e espalha um batom quase imperceptível nos lábios rosados. Um suspiro. Dois. Guarda tudo na bolsa, puxa a meia calça na altura das coxas, ajeita a saia nos joelhos e a gola da blusa impecavelmente passada, esfrega a ponta dos dedos nas laterais dos sapatos lustrosos e abre um livro, que só é fechado na esquina de casa.

Nesse dia, no ponto seguinte, na altura da Voluntários, subiu  as escadas do ônibus, com  considerável dificuldade, uma senhora obesa de cabelos  curtos ensebados, trajando um jardim de maxiflores multicoloridas, do pescoço atarracado até o meio das canelas cabeludas. Depois de se arrastar lentamente pelo corredor estreito, desabou ao seu lado, ofegante. Lambendo os fios do bigode escuro lotado de gotículas de suor amarelado, perguntou, numa fala entrecortada e ríspida, se Clara poderia fazer o obséquio de ocupar menos espaço, para que ela pudesse caber também no banco. Solícita, Clara fechou o livro com o indicador marcando a página e, timidamente, se desculpou, tratando de espremer seu corpo franzino de miss entre a velha e a meia janela rachada imunda.

Sem agradecer, a mulher observou por alguns instantes a capa do livro em suas mãos de dedos finos e esmalte transparente e, com um olhar que fez a espinha da garota gelar e seu corpo tremer inteiro em um arrepio incontido, perguntou:

- Bukowski?
- É... - respondeu Clara, quase com medo.
- Gosta?
- Sim.
- Puta. - grunhiu a velha, entredentes.
- Como?
- Puta. Vagabunda, perdida, biscate, rameira.
- Desculpa? A senhora está me ofendendo? - perguntou, sem conseguir acreditar no que ouvia.
- Se lê Bukowski, e gosta, é puta. - cuspiu enraivecida a gorda, já se levantando para sentar duas cadeiras atrás.

Com as ofensas inesperadas rodopiando dentro da cabeça, Clara segurou o espelho de novo e se olhou demoradamente. Deixou que cada uma daquelas palavras preenchesse todo o espaço da boca e as repetiu para si mesma, uma a uma, observando, cautelosa, cada movimento labial no reflexo do coração rosado: Puta. Vagabunda. Perdida. Biscate. Rameira. E sorriu. Arrancou o elástico que prendia a ponta dos cabelos sedosos e soltou a trança perfeita com os dedos compridos. Limpou a boca insossa com as costas das mãos e tirou da nécessaire o batom vermelho, aquele que tinha comprado na revista da Avon mas nunca teve coragem de usar. Abriu os dois primeiros botões da camisa e encurtou a saia, dobrando o cós até que ela chegasse ao meio das coxas bem torneadas. Levantou do banco exalando um cheiro rascante de fêmea e, consciente do poder que carregava nos quadris, ao avistar a velha senhora piscou um dos olhos, a língua úmida desfilando abusada entre os lábios carmim, enquanto puxava a corda presa no teto. Em cima do salto, desceu e seguiu. Inteira puta. E magnanimamente feliz.

Sylvia Araujo

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Tratado das Pequenas Grandes Coisas

Sentados na borda do rio, bem em cima do arremate verdinho de grama molhada, Cecília e Antônio sorriam com as cócegas da água translúcida nos seus tornozelos-meninos. Há algumas rugas atrás, decidiram de comum acordo se fazerem rotina: um pra outro, outro pra um. Pra isso, assinaram no papel manchado do pão doce da Dona Norma que, despencassem canivetes ou balas de goma - ou seja lá o que caísse do céu - todos os dias se encontrariam depois da escola na terceira árvore, dois suspiros depois do barranco do Zé.

Nessa terça de céu azul, o Tratado das Pequenas Grandes Coisas precisou ser esticado na copa da árvore mais alta do campo e ficou por lá dois dias seguidos secando ao sol, porque Antônio não resistiu e lambeu até com as bochechas todo o creme que estava grudado na parte de baixo da folha, bem pertinho do rabo do "o" da palavra silêncio. Cecília achou graça da cara de sem graça de Antônio e riu pra valer, afinal, o item mais importante do combinado dos dois carregaria para sempre a marca da lambida do amigo - a ausência de palavras seria úmida e doce, até que deixassem de ser crianças e brotasse neles a necessidade de dizer coisas e mais coisas para serem entendidos - um dia sempre deixa de bastar o não-dizer.

Aproveitando o muito que é o quase nada dos poucos anos, Cecília e Antônio seguiram os dias com a falta de regras das suas novas regras debaixo do braço. Davam-se as mãos aos meios-dias e, sem trocarem uma única frase, seguiam sem pressa pra beira do rio, onde sol após chuva, chuva após sol, mergulhavam os pés descalços na água gelada e aproveitavam cada um seu próprio mundo, com todo aquele enorme e excitante mundo em comum.

Hoje - Antônio ao sul, Cecília a noroeste, os corações suspirosos da mesma curva - desembrulham as lembranças com todo o cuidado, em pontas de pés, pra não fazer nenhum pequenino barulho; pra não acordar o silêncio que plantaram no peito tão bem plantado e regaram, dos seis aos doze, com aquele precioso papel lambido de pão e pureza.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Inferno em poás

Quem me dera um par de asas
coloridos apitos
confetes
línguas de sogra:
carnaval a gosto
num quase-setembro
- quem me dera um ombro
sem tempo.
Um frasco de ar puro
- novo pulmão:
quem me dera eu-outra
não essa dor multidão.

Tem dias, me quero poeira
- rastro pouco
muito vento
(longe).
Quem me dera, sim,
um não:
ecoante e redondo
feito um sonoro palavrão.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 27 de junho de 2011

você
que tem medo e desejos
que sonha alto:

teu mundo lateja em mim.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Tua, inteiratua

Preciso
mergulhar profundo
na melodia doce
dos teus olhos
vastos.
E lamber
esse teu cheiro
vivo
de janela aberta,
(im)perfeito amor.

 
Sylvia Araujo

terça-feira, 24 de maio de 2011

A vida é tanto, meu amor...

Você pega o papel amarelado e vazio. Olha ao redor do quarto pelado, perdida no enfrentamento, afogada no próprio umbigo. Por mais que seus olhos secos insistam em dizer que não, eu vejo o tremor da folha entre seus dedos escurecidos pela nicotina. A quarteirões inteiros de distância, eu sei que está histérica, anda neurótica, arrancando os cabelos, a ponto de panfletar banalidades no chá das cinco. Literário, né? Um momento único para trocar impressões sobre obras e sobras do que muito mal sente. Babaquice. Você mente, cínica. Descaradamente. Faz tipo fashion, claudica no salto, maquiagem aos gritos. Bate no peito, se diz bem resolvida, dona de si e do próprio nariz. Tem dó. E o que fazer com as palavras que dançam na sua frente quando a visão embaça? Você sabe, ou vai continuar em branco? Falsa. Pequena burguesa metida a besta, pseudointelectual de merda, é isso que você é. E ainda tem a desfaçatez, sorriso de canto, de dizer a deus e ao mundo que não me quer. No chá. E tomando café, só pra contrariar. Porque você é assim, anda contra a maré pra provar que sabe muito bem o que quer. Mas quando desmonta a armadura, cabelos molhados, cara limpa, pé no chão, é tudo vazio, não é, não? Eu abri as cortinas, te apontei o silêncio, você pôs pra tocar um lançamento irlandês. Eu dancei nu na sala, de braços abertos, você com o Jabuti do ano pesando entre as mãos. Fiz massa com o manjericão do canteiro, mas a sua dieta dura o mês inteiro - pra entrar naquele vestido apertado que pagou uma baba, sem nem te caber. Eu tentei fazer com que você enxergasse a imensidão do quase nada. Me esforcei pra que percebesse que o vazio é um vaso cheio. A vida é tanto, meu amor. Mas você - a tempo, ainda - é pouco demais pra mim.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 16 de maio de 2011

É tudo (um) vão, esquece.

Arranca com as unhas que restam essa dor tamanha que te corrói a alma, vamos. Enterra esse maldito peito soluçante desesperado, rumina esse medo. Mastiga trinta vezes essa fome impiedosa de amor - cospe com força. Você não merece engolir tanto não, vambora, não chora. Prepara a fogueira com calma - uma a uma todas as cartas de amor - e taca fogo. Deixa arder o tempo. Aquece esse corpo possuído por calafrios. Vomita, grita. Grita com força até te faltar veneno. Expurga as palavras - não faz mesmo sentido guardar tanta letra, dentro ter tanta coisa - é tudo (um) vão, esquece. Sacode esse corpo, se enfia na chuva, se deixa escorrer, não foge. E sente. Sente o dia que nasce, sente o abraço do amigo. Tateia o vazio no peito e sorri o recomeço. É hora de voltar a encher: um sorriso branquinho, um vento de maio, um arcoíris no céu, um ronronar de gato. E um mesmo amor, novinho em folha, para acreditar.

Sylvia Araujo

sábado, 14 de maio de 2011

E.M.O.C.I.O.N.A.D.A



Música, voz e violão: Janaína Mesquita
Letra: Sylvia Araujo

Obrigada, Nanamore, por esse sopro de brisa no meu dia sem sol.
Te amo. E é pra sempre.

sexta-feira, 13 de maio de 2011

Vou deixar esse post com o link aqui, pra não apagar os comentários lindos.
Obrigada pelo carinho de sempre, queridões!

Uma beijoca


http://www.youtube.com/watch?v=ZbsvuHlx0Z8&feature=share




Dói.

(absurdamentemuito)



sexta-feira, 6 de maio de 2011

Expressamente, amor.

Ela gira a maçaneta e afunda o pé direito no carpete vermelho.
A mesma sandália de ontem, reparo.
A mesma bolsa, a mesma calça - o mesmo rasgo na coxa direita.
Não é a mesma, hoje. É outra.
Enfeitada de inteireza, vem sinuosa, lânguida.
Atravessa a porta, silenciosa, e mistura seu cheiro de fêmea ao gosto árido do meu cigarro ao meio.
Parece enevoada, suspensa, etérea.
Eu observo a maneira como mexe nos cabelos ondulados e umedece os lábios finos.
Seus dedos compridos de unhas malfeitas carregam, impressas nos movimentos, as formas de um corpo maior que o seu.
Seus braços de bailarina estão mais expansivos.
Os gestos, enérgicos, cheios de vida.
Ela transpira sexo selvagem.
Expõe tatuagens temporárias no pescoço, no rosto.
Seu respirar entrecortado soluça a eternidade de um sublime gozo.
Fecha os olhos e suspira, como se ainda estivesse estirada sob o úmido peso do amor.
Puxa a cadeira da mesa do canto e pede um expresso em xícara quente.
Na espera, seus olhos cinzentos se perdem nos abstratos tortos da parede branca.
Eu me perco nela.
Reparo no movimento sensual com que rasga a ponta do pacote de açúcar com os dentes e lambe os dedos melados.
Vejo seus lábios rosados entreabrirem e tocarem, suaves, a borda da xícara fervente.
Sinto na língua ávida a temperatura aveludada do seu café.
E o calor daquela boca imunda, tomada toda de outra boca qualquer.
Tenho em mim seu tremor intenso na cama larga.
No corpo febril, me apossam seus espasmos intermitentes.
Levanta de repente e toma o último gole, já morno, de pé.
Dobra um guardanapo ao meio e deixa que ele absorva a gota acobreada que se dependura no canto estreito da boca.
Eu vejo quando abandona a xícara, quando abraça a bolsa, quando se despede das lembranças sem olhar pra trás.
Eu vejo quando vira as costas e parte de um ontem cálido, pisando confiante em um amanhã só dela.
Ultrapassa a porta mais mulher e vai.
Eu fico.
E me levanto, e seguro com a ponta dos dedos o seu desprezo no papel manchado.
Enfio no bolso da calça os sentimentos amassados da noite felina que ela decidiu esquecer.
Levo comigo seus beijos, seu gozo, seu gosto.
Para que nunca me esqueça daquilo que nunca vivi.
Para que, ainda que nunca mais volte, ela jamais parta daqui - de dentro mim.

Sylvia Araujo

terça-feira, 12 de abril de 2011

Agora é tempo que não existe.

Serpenteia lentamente, descendo sinuosa pela janela embaçada por úmidos suspiros mornos, uma chuva esfarelada, tardia. Nos olhos dos que entontecem diante do milagre das gotas, a incredulidade. E um desejomedo enorme de se fazer tocar pelo cristal amolecido - com a ponta das pestanas - pra saber, enfim, a dor da chuva que pinga do céu; e não do peito. O cheiro dos diasmesmos, há anos enraizado ali, se fazia amarelopoeira encrostado em pardacentos narizes - trincas na terra batida, dedos sem unhas, doídas ausências do que nunca existiu. Mas hoje, o tempo da casa vazia sem teto fede a um bolor umedecido de lama e lamentos. Fede a vida que vive, entrecorta respiros e se arrasta, sedenta. Hoje, o tempo, o mesmo tempo de todos os tempos, abandona sua gasta previsível couraça e se veste de agora - esse agora que é tempo que não existe, que é quase tempo quase vivo; esse agora que é broto dentro, esperança ateia.

Nunca houve um amanhã. Nunca houve um logo mais, ao entardecer. Jamais se soube, naquela planície estanque, de um dia após outro dia, de uma fruta apodrecendo em seu ritmo, de um rio sussurrando nasceres, de um começo ou de um fim ou de agoras. O ontem é só referência pra morte, dali a lei diz, e ao que não vinga não cabe findar-se. A mesma luz abafada e perene rodopiou anos a fio em círculos concêntricos por um campo eternamente brotado de nada, dia após noite, noite após dia. Parecia existir apenas para dizer aos poucos que restaram que, ali, naquele início de fim de mundo, onde nada morre e nada vive, onde nada amanhece ou anoitece, não há finalidades e tudo é pra sempre, que não adianta sequer tentar morrer, pois não se pode terminar o que jamais se começou. Durante incontáveis gerações sem chuva, o dia foi um enlouquecido torturante repetir-se em si mesmo. Um não viver ainda que vivo, morto.

Aqueles olhos, escondidos atrás das janelas salpicadas de vida, observaram atônitos o nascimento das coisas e o ágil refastelar das heras nas paredes nuas. Segundo após segundo, terras se abriram e delas romperam, febris, frondosas árvores e brilhantes arbustos. Pequenos pássaros nasceram de asas abertas e, das fendas no chão rasgado, rumaram aos bandos ao encontro de borboletas e gaviões. Lambaris, lagartos, sapos e grilos, rios e mares, flores silvestres, grama nova, tudo borbulhando aos borbotões da terra enlameada. Os olhos, famintos em sua esterilidade inata, com a violenta força de algumas poucas lágrimas frouxas, choveram. Choveram por horas e horas para que, junto com a terra e seus recém-nascidos amanhãs, pudessem também fazer nascer e morrer o agora, dentro de si. Com um gosto adocicado e vermelho descendo suave garganta abaixo, abençoaram, sem um único piscar sequer, aquele primeiro e último alvorecer.


Sylvia Araujo

domingo, 3 de abril de 2011

Muda sinfonia




É longe, a noite.
Ainda que aqui
- em mim -
é braço inteiro de distância
mais dois sorrisos
murchos.

É dentro, o escuro
que engole a chama tremulante
e vara
os dois pontos brilhantes
- equidistantes -
do teu céu.

Fecha os olhos
e canta,
que amanhã
azulo.

Sylvia Araujo

sábado, 26 de março de 2011

Duro poema cru

Outoneço. Desverdeada, busco insana um porto onde espreguiçar o olhar - esse olhar que hoje me esparrama tristezas que até as palavras ir-reconhecem. De dentro, vem em golfos lava fervente que me escorre, abrupta. É súbita a destemperança que reveste de escureza esse tão cheio vazio que me carcome as tripas: é urgente o nada a dizer. Portanto, nada digo para que não se gaste o gesto - escoo em tortuoso e duro poema cru, o medo. Sozinho-me em desbotados instantes meus e anoiteço letra - ela há de empacotar com cuidado os miúdos haveres, há de dar fim ao que não se presta a ser sol.  No espelho trincado, aquela mesma conhecida imagem nuveada, cinza. Na ponta dos dedos, a desesperada poderosa transpiração dolorida dos enlouquecidos de amor. Ajeito, então, uma vaidade qualquer no corpo ainda rígido e sigo. Porque, do coração, já me escapuliram há tempos as rédeas das mãos.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 23 de março de 2011

Maneco

Maneco é nomecarinho, apelido de Manuel dos Santos Anjos, dado por sua mãe de frágil raiz, ceifada poucas horas depois do sofrido parto. Doente do coração, desde nova dividia o peito com o vento morno que lhe soprava dentro e lhe fazia palpitar em arritimia a bomba falha. O quanto que de ar faltava era o mesmo tanto de amor que brotava, enquanto acarinhava embevecida a imensa barriga, morena e redonda feito lua inteira. Trazia Maneco no ventre e, com ele, seu eterno continuar em botão de flor. Maria sabia e ninava a certeza da poesia que crescia dentro de si, cantarolando baixinho seus intocáveis amanhãs.

Sozinho, filho de pai desaparecido e mãe enterrada, neto de avós distantes e sobrinho de não se sabe quem, cresceu aos trancos e barrancos no meio de incontáveis sementes ocas que não germinaram. Na terra árida e endurecida - não se faz ideia como - vingou. Inexplicavelmente, manteve-se firme e ereto sobre os estreitos caniços, que até hoje exibem distraídos mais marcas que sua própria pele azeitonada - lembrança irrefutável de Mariamorena. Cópia quase perfeita de sua mãe - exceto pela ausência de alguns poucos dentes - Maneco, em osso e pele, minuto a minuto resistiu. 

É março. Chove copiosamente em um Rio de Janeiro cinzento, e do asfalto esburacado brotam, a cada segundo, lagos amarronzados pontilhados das mais variadas imundícies metropolitanas. Entre guimbas baratas - carimbadas por carnudos lábioscarmim - e prisões plastificadas de espermatozoides malsucedidos, tem de tudo - uma variada gama dos dejetos humanos mais inúteis que se possa cogitar. Há quem pise em cheio nas fundas poças e maldiga dez gerações futuras mais seis passadas. Há quem simplesmente afunde e chore chuva. Maneco, aos vinte e poucos, em mangas de camisa e chinelos de dedo, sentindo as gotas beijarem seu corpo e cantarolarem no meio fio da vida, enternecidamente sorri.

Ele anda indiferente aos atropelos do centro da cidade apinhado de guarda-chuvas multicoloridos em pé de guerra. Eles se estapeiam, os mumificados ausentes donos dos para-águas. Ferem-se mutuamente com suas pontas afiadas cheias de ferrugem alaranjada, com seus cotovelos pontiagudos, com seus olhos vítreos - frios feito punhais. Maculam quem passa na medida exata com que arranham a si mesmos, todos os plúmbeos dias. Só ele vê. Com seus olhos de Midas - herdados de Mariamãe - só Maneco é capaz de ver a vidaviva que se pode viver, quando não se tem mais nada - coisa nenhuma a perder.
 
Sylvia Araujo

terça-feira, 15 de março de 2011

(Re)Para e Re-começa




Repara, amor, com cuidado, o som de veludo que ecoa das nuvens, quando escorregam as fofaspantufas no teto estrelado, escuta. Repara o halo azulado daquela com laço de fita e sente, ao longo da espinha, o calor que esparramam seus braços, enquanto rodopiam - imensos - de encontro ao dourado do sol. Repara, pequeno, o verdedoce gostoso dos dias, o poder da ínfima gota, a inteireza brilhante do extenuante caminho do broto, germina. Repara os dedos compridos da chuva que tamborila cantigas serenas, no embalo do teu justosono, acalenta. Repara, de olhos fechados, a imensidão do horizonte do mar - as negras ondas, a espuma farta, a luatoda em mergulho nu, submerge. Repara no roto, no feio, no sujo, no espelho - repara em si mesmo, alimenta. Repara o nada que vibra no fundo do peito, repara o vácuo, o liquefeito, revê.  Repara, meu filho, repara a vida que escapole da terra molhada e te acarinha - suave cetim. Percebe o sutil e inesgotável prazer que os rios têm em sempre recomeçar. E re-começa - todas as vastas manhãs.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

- fenda, ferida funda -

Armada, armazena tocaias e arapucas. Foge. Esnobe, manda e desmanda. E sangra, e escorre, e grita - estapeia(-se?). Minimiza – máxima - e, tácita, entreolha ácida o que nunca foi. Assim, alheia, desmancha, deteriora -  em-pó-(p)rece. E chora – implora - se faz falta, evapora. Ela ama! Ah! É toda cama - ama como nunca na vida amou! Mas já é ontem quando o sol desiste. E ela sabe. E invalida, inválida. E insiste, arrasta o nunca, empurra, afasta. E se arranha inteira - metade arrancada. Não cabe! Ainda assim, buraco dentro – fenda, ferida funda - nunca cabe o que se ausenta. É um tanto de peito inteiro - é vácuo. É receio, névoa, neve derretida. Ela é partida. Sem linha de chegada, desejo: o suspenso etéreo desejo de um primeiro - e último! - beijo.
Sylvia Araujo

sábado, 8 de janeiro de 2011

Entredentes

Aquela boca - admirável talho carnudo engolidor de nuncas. Jamais me permiti o destempero de dizer nunca àquela boca, sendo. Ela é - inteira ela, e sempre, a boca - um corpo inteiro em arrepio etéreo, um quase-incêndio, fogo entredentes. Um mundo vivo e pulsante, a se dissolver lentamente no acentuado côncavo daquele céu - não há estrelas, mas mel.

Traz consigo, tatuada entre os talhos ressecados pelas jornadas de excessos - beijados por seus fartos pelos de aurora - a réstia de um beijo, eu sei. E o brilho pegajoso das máximas urgências que construíram ninho, ao longo dos anos, em sua delicada fenda rosada. Todos os dias ela amanhece em fresta, e se faz de ontens. Mas é inteira amanhãs, em mim.

Seu canto me enluara. Faz do meu sertão flor da pele, lua – inteira nua - por entre as nuvens fartas. E arrasta consigo - debruçado no contorno sutil dos lábios entreabertos - o resto das noites brancas em que me escorreu, entregue. Ainda que haja luz, abraça com a ponta da língua o sal dos escuros da chuva. Ela chove, a boca. É relâmpago, raio, trovão – alto-mar bravio, em zanga de furiosas águas. E sorrindo, - bonita sabedora de seus tantos encantos - ensolara, gargalha e geme, como quem esteve sempre vivendo ou sangrando.

A mando de dentro, brota. Em gotas. E – em inevitável destino-caminho – se encarrega, sozinha, de virar rio aqui.

Sylvia Araujo