Foto do blog: Mario Lamoglia

sexta-feira, 14 de novembro de 2014

Manoelando eu sou mais feliz. Ele é daquela espécie de poeta que faz nascer plumas nas costas envergadas dos homens e vingar sussurro de riacho manso no meio dos automóveis enfurecidos. Ele é, e não foi - como disseram algumas notas de jornal -, porque a poesia não sabe ser mortal, não apaga quando se fecham os olhos ou se termina um livro. Ela fica lá, gravitando, vibrando dentro da gente, aquecendo as friagens da vida e embalando os sonhos no peito.

É emocionante ouvir a voz doce desse passarinho encantado lendo três das suas poesias no vídeo.

"No meu morrer tem uma dor de árvore." [Manoel de Barros]

terça-feira, 11 de novembro de 2014

 
Às vezes gasta, bruto remendo, partida, despedaçada, exausta, manca. Às vezes só suspiro fraco em meio a tanta distorção, pavões em transe, dor lancinante, susto, choro ou privação. Às vezes, um tímido talvez ou puro e cristalino não (às vezes sonho, asa, raiz, às vezes tudo ou nada, casa, às vezes chão). Mas tão resistente e plena por saber de si ser dona inteira que, mesmo pouco vistadmirada, brota, sem se cansar de ser, a poesia, o que a esperança desesperançada sempre e sempre cria: nos meus olhos, pó transmutado em companhia, nesse aqui cansado coração, denso orvalho úmido, pão.
Sylvia Araujo

domingo, 26 de outubro de 2014

Cronicamente Viável


Esse processo eleitoral brasileiro tem me feito pensar muito. Vivemos na última semana um clima de copa – dois países, duas bandeiras, uma só terra. Os ânimos acirrados, os punhos levantados e cerrados de ambos os lados, defendendo seus sonhos “opostos” com unhas e dentes, ainda têm deixado o clima bastante tenso, mesmo horas depois do apito final. “Memes” sobre término de relações de amizade surgem a toda hora, conhecidos e desconhecidos se agredindo por escrito em várias redes sociais ao mesmo tempo – o que agrava ainda mais a tensão da coisa: o pessoal passa a ser público e vice-versa.

Todo mundo precisou se posicionar, definir de que lado estava. Basicamente, uns defendendo o social, outros o mercado, como se esses dois caminhos não fizessem parte de um único objetivo: a construção de uma nação maior, mais sólida e forte, mais respeitada mundialmente, mas foi nos imposto escolher. Houve também um número bastante expressivo de pessoas que manifestou nas urnas a loucura dessa bipolarização e anulou o voto, ou votou em branco (que no final dá no mesmo, a gente viu nos vídeozinhos que circularam pela internet), eles têm o meu respeito. O povo brasileiro - primeira vez que vejo isso na vida! - se envolveu com a política do país, leu, se informou e votou consciente. Isso é incrível e histórico!

Li agora uma frase no facebook, compartilhada por um amigo de, provavelmente, uma amiga dele, que diz: “Dilma e Lula vestidos de branco. É sinal de construção da união nacional. Bonito de ver.” Vejo um pouco por aí. O Brasil - e o mundo - está vivendo um momento de reconstrução histórica. Já está claro que o capitalismo é um sistema falido, vide o resultado das eleições, não dá mais pra viver só do consumo. É preciso parar de mirar só o capital, o celular, o computador, os carros, a aparência das coisas e olhar mais demorado para a terra, para os rios, para o ar que respiramos, para as pessoas à nossa volta. É preciso recuperar o afeto, urgente. No entanto, sabemos também que não dá pra viver nesse mundo sem o mercado, que reforma agrária e igualdade social sem comércio exterior nos faz ser engolidos, virar marionetes políticas. Mas, convenhamos: não precisamos, aqui no Brasil, de um neoliberal nem de uma comunista.

Nós estamos subindo os muros, matando o planeta, derrubando a nossa própria casa e nos afastando dos nossos semelhantes, que são os únicos que podem nos ajudar. Milton Santos já previa, no seu maravilhoso “Por uma outra globalização”, que a humanidade entraria em colapso e flutuaria em uma espécie de vácuo, onde seria necessária uma profunda reformulação política mundial para que as coisas começassem a voltar para o eixo. O capital, com o seu total abandono social, beiraria a perversidade - e lá estão África e Palestina, em seus gritos recentes, pra não nos deixar esquecer.

É preciso que Cuba ofereça ajuda para o controle do Ebola, é preciso que a Bolívia se posicione contra os bombardeios na Palestina, que a Rússia faça transações com a Índia, que o Uruguai espalhe seu incrível exemplo de humildade e contamine o mundo. E é preciso que os Estados Unidos queiram dialogar (isso já é mais difícil e talvez vá pintar por aí, em algum momento, mais uma guerra mundial por um poder tão inútil), claro. Uma nova maneira de enxergar a globalização é extremamente necessária, senão nos extinguiremos – estamos matando os índios, os jovens negros de favela, gente! 

Somos capazes de construir um meio termo se abaixarmos as bandeiras e dermos as mãos. A América Latina está forte e unida, "chegou a hora dessa gente bronzeada mostrar seu valor". Somos capazes de mostrar ao mundo como é que se faz política de verdade – eles estão de olho, estamos fazendo barulho! -, todos juntos, políticos e povo nas ruas cobrando as mudanças, construindo, em parceria, um vanguardista sistema político-econômico, inventando, enfim, um novo e mais justo modelo de estar humano no mundo, através do diálogo.

Que venham as próximas décadas com muitas pitadas latinas mais. E que o amor nos proteja, amém. 

Sylvia Araujo

segunda-feira, 30 de junho de 2014

E um dia a gente descobre que o destino depende somente de a quê e a quem nos destinamos; e de que maneira isso se dá. Aí o sol morno aquece, o vento suave sopra, o peito se enche de ternura, as sementes espalhadas germinam, o sorriso brota mansinho, enraíza fundo e fica.

(um dia a gente descobre que o amor é bumerangue).


Sylvia Araujo

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Vento

A encosta quase verde neon, o cheiro do vento morno dos dias, o estalar da madeira no fogo, as incontáveis estrelas no céu. Os gatos esparramados na sala, os cães bebendo água no açude, as crianças felizes aos pares, o pique pelas portas abertas. As pipas lá no alto do céu, o tilintar do mensageiro dos ventos, o cheiro de doce do tacho, as risadas na mesa comprida. O vinho seco-suave, a poesia dos hojes em branco, os erros, fracassos, lições. Os abraços, os sorrisos, os laços, reconhecidos os mormaços, os olhos fechar. Oferecer as desculpas, o beijo, a flor. E o amor. Seleto, raro, preciso - por isso inteiro e em paz. 

Sylvia Araujo



terça-feira, 20 de maio de 2014

Um quê de espinho, um cisco

Está um dia um tanto quente hoje, não? Muito, muito quente mesmo, bem mais quente que o previsto. Abafado à beça o pouco ar; mal respiro, arde, dói - bem aqui, ó. Uma fisgada funda, às vezes - ai! -, viu só? Que coisa incômoda isso, um quê de espinho, ponta fina quebrada, uma lasca, um rasgo, um cisco, cruz credo. Ontem teve susto de granizo, você soube? Ou foi anteontem? As horas se confundem nesse lugar, os minutos se embaralham, nos ponteiros, ímã, é tudo agora aqui: hoje, ontem, anteontem, seja lá qual for o quando, só sei que teve. Foi em São Paulo, eu acho, ou coisa parecida - no fundo, no fundo, perto ou longe, tanto faz o onde, quilômetros são só rasas fugas, enfim, deixa isso tudo pra lá, melhor assim. Descolou do teto essa coisa toda, despencou do céu, sem parcimônia alguma, uma puta surpresa de gelo, pois é. É o imprevisível dos dias, esses sonhos todos, sempre prestes a derreter no próximo segundo, um deleite desesperançado, percebe? Bonito de ver, até, mas eu não vi, nem senti, porque já estava aqui. Não, eu ainda não me movi, espera, se acalma, que pressa é essa? A natureza é sempre um esplendoroso espetáculo, um circo sem lona, um palco escancarado às incontáveis avarias da vida - é pra sentir. Ah, a vida! Dá só uma olhada, escuta esse barulho todo dentro do peito, presta atenção, observa. Sente esses pingos no rosto, lambe esse sal que, abusado, te cola nos cantos dos lábios e me diz: é ou não é tudo isso? Mais ainda, eu sei: ela é dona de infinitos segredos, precisamos, nós todos, de algum tempo sem dedos. E de certas chaves também, me parece. Isso não é nada engraçado, não sei porque você ri. Está mesmo um dia quente ou eu é que ando suando demais? Olha só essas marcas escuras na roupa, quanta umidade anti-estética, meu deus, quanta nódoa - vê aqui? E aqui também, embaixo dos braços, entre as pernas, esses pelos bizarros, esse rio tão quente que esvai entre os fios, um horror, um horror! Meus pés estão escorregando, reparou? Os dedos colados melando, que nojo. Essa pretidão derretida escorrendo pros lados, essa poça esquisita aqui embaixo e esse mar aí, todo ele bem aí - ê, marzão! Melhor ficar descalço logo, enfiar até o tornozelo nessa areia fina e morna e ir. Faz tempo que ando obcecado com esse próximo passo, me falta é coragem, confesso. Que suplício, que martírio esse ter sempre que ir além, meu deus! O gozado é que o sol está quase todo encoberto, essas tantas nuvens aí, vê só - leões, dromedários, bicicletas, medos, uma porrada de medos, e eu aqui suando. É uma tensão estranha, sabe? Repara como os meus ombros tremem, as minhas mãos tremem, os meus joelhos batem, um no outro um no outro, que sensação desconfortável essa, pois é. Eu sei, eu sei, mas não quero me arrastar, entende? Quando eu sair daqui vou galopar! É. Me dá até vontade de rir só de imaginar, escuta só: vou tirar os chinelos, bem devagar, e vou chegar ali, bem na pontinha, tá vendo? Mas bem na pontinha mesmo, só apoiando o calcanhar. Um balanço de leve e pronto!, meus pés já vão estar na areia, simples assim. Aí, eu vou correr muito, muito rápido, com os braços bem abertos e os cabelos voando. E quando eu chegar lá, bem pertinho, quando aquela água verdeazul encostar seu frio na ponta dos meus dedos e abraçar os meus calos, eu vou dar três pulos grandes e, de olhos bem abertos, vou me jogar. É sério! Mas calma, calma que eu ainda estou aqui, racionalmente, calculando tudo. Tem que ser um daqueles passos perfeitos que a gente dá na vida, sabe? Os pés, a areia, a água, o salto - ah, o mar, o imenso mar! Só um pouco mais de paciência, um pouquinho só, tem dó, que, por enquanto, estou daqui olhando, filmando tudo e surfando alto, muito alto, bem na crista desse filho da puta - ah, esse maldito medo!

Sylvia Araujo

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Sopro dos pássaros

Com a lâmina fria e gasta enterrada bem fundo no peito, um suspiro. Dois, exaustos, e já me foge o ar - rascante, abafado, úmido. Seco e úmido. Seco de dar dó. O medo alarmante do barco tão frágil virar já sumiu no horizontehoje, desapareceu lentamente à turvas vistas, desde aquele anoitecer nublado irrepetível. O medo é monstro aborrecido, é âncora. Ninguém se lembra porque ninguém viu aquele tanto azul se esparramando, entregue, pelo chão gelado. Mas eu sentia que aquelas contas todas, aquele tanto mar, aquela bruta urgência era só vazio ensurdecedor, cheio de qualquer coisa pouca que conviesse agora. Eu sentia, cega.

Atiro pedrinhas redondasmiúdas no espelho do rio, os pés descalços sujos, o peito em luto, os olhos ardendo, enquanto o vento vem - insistente mansidão-frescor - me falar baixinho do amor. O vento sabe do amor. E a raiz, o broto, o sol que esquenta, a areia fina que escorre pedaços por entre tantos dedos, até virar inteira outra vez, incansável. É preciso nunca desistir de acreditar que ainda exista a beleza - a todo tempo os pássaros sopram. E a verdade, o bem sem amém, o abraço inteiro, o riso sem medo de ser apenas riso e nada além. É urgente acreditar para não sucumbir. Por isso aquelas tantas sementes guardadas no fundo da gaveta escura do armário sem uso, percebe? Porque sempre chega a hora, a vida já me explicou, em que é preciso preparar de novo a terra, escolher os melhores adubos e regar com calma e carinho um novo e mais bonito amanhã.

Sylvia Araujo

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

(pelo) Vão



Teus olhos gritam um silêncio hercúleo. Daqui te ouço, Maria, sou só pedaços. O final da rota te entupiu de ecos, sob escombros treme esse teu peito murcho, já não há sorriso, a lembrança é rala, o amor é sépia, amanhã chegou? Onde está teu rio, tuas meias margens? Por qual das caixas, aquele teu lilás? E essas mãos aí, tão sedentas, imóveis; tão lacradas, sujas; e essas rugas vastas - todas rastros vãos? E esses teus olhos turvos, que eu não vejo e sinto? (nos teus olhos bebo o cheiroazul do mar). Não vá tão logo, que a esquina é perto, o coração é reino e muito mais suporta, o sol aquece sem nenhuma prece: não vá perder-se pra não mais voltar.

Teus olhos berram, Maria, é sede!
Sylvia Araujo

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Ajardinar

Lavra as palavras, feito terra, uma a uma - aduba. Escolhe a dedo o que te sai da boca, do peito, dos pés - caminha. Abraça os desvios, traça outros planos, em mil atalhos por aí, se encontra. Dos poros, permite só o escorrer do suor; é fevereiro, enfim, não há fuga. Já do amor, salgado e doce, exige nada - planta e rega e ama, claro, pra fazer germinar.  

Lava os sentires na corredeira do rio, os cabelos no mar - abre os braços, boia. Retém a maré do lado de dentro, escreve - escreve e canta, não esquece de cantar. Mas cala, também, que palavra é raiz e broto de asa sempre exige silêncio. E respira. Dança, salta, rodopia - escorre -; horizonte é feito de sonhos-nuvens, o dia a dia é hoje, irrevogável - vive.

Leva embora o que não te cabe, deixa sumir o que não te abraça - segue. Soluça as tristezas baixinho, observa os gatos, lambe as feridas. Cicatriz não mata, não mesmo - renova o foco, resiste. Escancara o peito pra esse sol que insiste em ser sempre o mesmo e ao mesmo tempo outro - transforma. Os medos, os cercos, os charcos - abandona. E lavra e lava e leva - que o deserto se ocupe em florescer por si. 

Sylvia Araujo