Foto do blog: Mario Lamoglia

quinta-feira, 1 de maio de 2014

Sopro dos pássaros

Com a lâmina fria e gasta enterrada bem fundo no peito, um suspiro. Dois, exaustos, e já me foge o ar - rascante, abafado, úmido. Seco e úmido. Seco de dar dó. O medo alarmante do barco tão frágil virar já sumiu no horizontehoje, desapareceu lentamente à turvas vistas, desde aquele anoitecer nublado irrepetível. O medo é monstro aborrecido, é âncora. Ninguém se lembra porque ninguém viu aquele tanto azul se esparramando, entregue, pelo chão gelado. Mas eu sentia que aquelas contas todas, aquele tanto mar, aquela bruta urgência era só vazio ensurdecedor, cheio de qualquer coisa pouca que conviesse agora. Eu sentia, cega.

Atiro pedrinhas redondasmiúdas no espelho do rio, os pés descalços sujos, o peito em luto, os olhos ardendo, enquanto o vento vem - insistente mansidão-frescor - me falar baixinho do amor. O vento sabe do amor. E a raiz, o broto, o sol que esquenta, a areia fina que escorre pedaços por entre tantos dedos, até virar inteira outra vez, incansável. É preciso nunca desistir de acreditar que ainda exista a beleza - a todo tempo os pássaros sopram. E a verdade, o bem sem amém, o abraço inteiro, o riso sem medo de ser apenas riso e nada além. É urgente acreditar para não sucumbir. Por isso aquelas tantas sementes guardadas no fundo da gaveta escura do armário sem uso, percebe? Porque sempre chega a hora, a vida já me explicou, em que é preciso preparar de novo a terra, escolher os melhores adubos e regar com calma e carinho um novo e mais bonito amanhã.

Sylvia Araujo

Um comentário:

Anderson disse...

Saudade daquilo que não veio...vc tem um toque clariciano, saudades de ti Sylvia, te conheço a dez anos sem nunca t conhecer, quando lembro disso acredito que anjos existam...