Andava cabisbaixo, voleando ao
ido alguns frágeis esquecimentos pelas poucas frestas das longas manhãs
cinzentas. Os ombros, displicentes, projetados em agudo ângulo sempre em
frente, resultavam em uma discreta protuberância elíptica que saltava em sutil
excesso sobre o cós avesso da calça jeans puída. Nos pés, uma firme crosta
alaranjadendurecida gritava ausências a plenos pulmões. É que o tempo, o medo e
o oco foram lentamente transformando - ano após ano – a envergada sola em bruto
casco e os longos e presunçosos dedos em garras irreversivelmente tortas, de
onde brotaram, inescrupulosas, escuras e defeituosas unhas. Sob cada uma delas,
restos.
Os grossos e enegrecidos cabelos,
alvoroçados pela ansiedade noturna dos próprios indicadores e polegares amarronzados
em pinça, apontavam incertos para todos os lados, feito setas em labirinto de
fauno. Era floresta de vastas matas aquela cabeça tão entupida de esteios. Era
nó de marinheiro; mar bravio, após longo e inexorável anti-cio. Em seus
longínquos olhos, ao fundobemfundo, morava em confundido eterno um vazio
extremo – cheio desses nadas que não se preenche com alguns poucos brilhos ou
qualquer rotineira existência crua. Tinha olhos de vento em tempestade, Olívia
sempre me dizia. Joaquim trazia bem junto consigo uma densa correnteza inescapável de
rio. Tinha peito amplo de mais viver - mas a vida vã não quis.
Joaquimiúdo vagava ansioso pelos
arredores de seu pequeno mundo, como quem está sempre prestes a desencavar
valiosíssimos tesouros. Eufórico, da hora em que seus atentos olhos se abriam à
imensidão do tempo ao momento em que suas minúsculas pálpebras pendiam frouxas
de cansaço, adicionava todo inédito e quase inaudível ruído à sua
incompreensível e interminável playlist. Anotava, sem grandes pretensões, mas
muita alegria, em um gasto caderno de folhas amassadas e encardidas, o
inconfundível detalhe do gosto da terra umedecida pela surpreendente geada do
outono; classificava os exclusivos odores dos acontecidos dias – categórico -
em listas muito bem separadas: o acre seco do irremediável nunca, jamais,
dividiria página com os adocicados poréns. Assim, minuto a minuto, ele
bem-vivia.
Acontece que Joaquimiúdo cresceu,
como toda criança que arrebenta no mundo sem pedir licença ou ser, quiçá, bem
quista, que seja. Adulteceu lentamente diante dos incrédulos olhos vistos daqueles
que nunca o compreenderam, mas viam nele uma espécie de santo entortado, de
sonho etéreo, de elo para sempre perdido. Seus tesouros – sua tamanha reluzente
riqueza sem-fim -, a cada breve dia que escorria, impávido, valiam, pouco a
pouco, um pouco menos. Adultos desejam, planejam. E planos não cabem na
amorosidade inédita de todo agora: se fazem amanhãs eternos que nunca vêm. Não
fosse aquela irritante teimosia branca em ser do mundo um pedaço dele, tal
qualquer outra microscópica parte sua, quase não teria sofrido neste aflitivo e
torturante desdizer, insinuou dia desses, Olívia. Joaquim espichou. E o mundo encolheu.
Distraído completo das coisas mesmas
dos dias, arrastando-se despropositado e mecânico pelos afazeres mais comuns da
vida de sempre, surpreendentemente apaixonou-se, então, aos vinte e poucos. Desfez,
sem nenhum esforço, todo mal entendido sobre a provável desaparição de seus tantos
antigos desejos latentes, quando preencheu-se inteiro de um amor que muito bem lhe
convinha. Ela, perfeita quase miragem, carregava, brilhando nos lábios, uma certa
certeza implacável e, suave, cheirava docemente a jasmim. Por onde passava era
raio de sol, radiante luminosidade que não cabia em si e, por isso, espontânea
e leve feito teia recém tecida, toda inteira esparramava. Para ele, o mundo
alargou-se, suspirava Olívia com os olhos úmidos. Nesse momento, em instinto, ela apertava
com força os olhos para de imediato focar a atenção em qualquer inalcançável movimento
ao redor. Nesse momento, ela sempre me dizia não ter absolutamente mais nada a
dizer.
Talvez eu tenha visto de relance,
um dia, uma constante pequena chama amarelecida sobressair quase incolor do
meio do pálido e enregelado lilás que fazia reconhecer Joaquim há anos. Imaginei
que, de fato, a partir daí, o mundo deixaria, enfim, de ser mero mundo para voltar
a ser parte dele e vice-versa. Tudo parecia correr naturalmente bem com os
cheiros, os gostos, os sons, os toques. Joaquim reavivava entusiasmado, um a um,
seus valiosos tesouros de infância e, pouco a pouco, transformava, cuidadoso, o
objeto de seu imenso e inexorável amor - e sua particular existência - em seu
próprio e seguro habitat concreto. Até que, numa quinta-feira em que as folhas
alaranjadas, levemente agitadas, voavam apressadas em círculos concêntricos pelas
sujas calçadas, cansada de ser toda mundo e desejando a simplicidade do
status de ser apenas uma microscópica parte dele - como toda e qualquer outra
parte - ela se foi. E, mais uma vez, o mundo encolheu.
Joaquim manteve-se estático,
sentado sobre as magras pernas em cruz no chão rachado da varanda sem teto, absorvido
absorto por um horizonte mais estático ainda, por dias mais dias seguidos. Não
comia, não dormia, não chorava – contei o desconhecido fato, sem alterações na
voz, a uma emocionada e anoitecida Olívia. Aos poucos, foi largando em cada
canto um considerável pedaço de mundo, até que nada mais restou além do que
hoje e agora se vê. Esse homem, que deixou de ser o que foi há tempos para se
tornar o inominável que o mundo retém em recusa, talvez mantenha ainda alguma pequena
valia daquele miúdo Joaquim; talvez ainda carregue sonhos – não planos – como um
tesouro escondido, do qual se perdeu o mapa para não deixá-lo escapar de vez.
Olívia,
sem dizer palavra, aproximou delicada suas mãos em concha à minha boca seca
e rachada. E, sentindo a trêmula quentura úmida que entrecortada me escapava, sussurrou baixinho em meus ouvidos por anos inteiros lacrados: ainda
respira, vê? Estou de volta, para sermos os dois o mundo, crê, Joaquim? E, aninhando as minhas mãos calosas e imundas entre as dela, quase impalpáveis de
tão mundanas, simplesmente sorriu.
Sylvia Araujo