Hoje é dia de beijar o sol que açoita inquieto a janela da alma - seus dedos quentes de raio me arranhando sutil a pele arredia. Um gosto de verão aflorando primaveras no céu estrelado da boca. Dentes de leão me brotando delicados pelo nariz; asas nos pés pra levitar além. Hoje é um dia bom pra lamber a música que escorre do chuveiro quente - e derramar junto. Mastigar demorado a melodia que suspira na água fervente da chaleira. Dançar com as notas sem compasso que tilintam no molhe de chaves - três pra lá, cinco pra cá, mais um bocado de variações inconstantes. Quem me espreita a sonhar assim imagina que deve haver algo de especial nessa segunda feira branca de maio. Se não muito, apenas um susto de especialidade. Mas não. Hoje é mesmo um dia como outro qualquer. E talvez por ele ser assim, igualzinho a todos os outros, é que se me criou essa necessidade incontrolável de me permitir ser invadida. Tocada, violada. De ter um dia inteiro rotineiro, digerindo bem dentro do estômago, pra que tudo o que nele habita me alimente as células famintas do corpo - e me faça vida ensolarada. Assim, ansio que o hoje me vista com o cheiro doce do plástico bolha que embala as horas - maneira poética de tê-las tiquetaqueando aqui dentro. Desejo mais: que me invada o gosto acre de toda a minha melancolia, pra que eu possa adocicá-lo com a maciez das frutas que nascem em terras onde eu nunca pisei. Espero ainda paciente que brotem em meus olhos, vigorosas, todas as flores multicores que chovem das árvores no outono. E que me seduzam os amores. Ah, os amores - todos eles, cada um deles em mim. Que o mar me tome inteira pelos ouvidos - colados em uma concha qualquer. E da lua, peço apenas que me entupa das suas fases, pra que eu aprenda a me entregar suave ao minguar, antes de crescer e brilhar, e brilhar mais ainda. Eu quero tanto, e tanto mais, porque descobri - olha só, que maravilha - que o hoje é o meu caminho. Me dei conta dia desses, olhando um casal de velhinhos de mãos dadas pela rua, que o laço de fita quem põe na vida sou eu. E é por esse pouco tão muito que decidi que agora onde eu vou, vou pra ser estrela. E levo na mala comigo cada minuto fantástico que borbulha. Além do miar de um gato, um kiwi maduro e um coração feliz.
Sylvia Araujo
PS: Voltei! :)
Beijocas floridas.
17 comentários:
Sylvia!
Que texto!!! As palavras jorram como uma cachoeira e eu fui levada por estas águas de pura poesia. A vida está ilustrada em cada pingo desse mar de prosa. E eu leio. Leio sem parar, quase sem fôlego, uma vez que é impossível fazer uma pausa, "pois hoje é dia de beijar o sol que açoita inquieto a janela da alma." Lindo demais!
Beijo
Belíssima explosão sinestésica!!
Beijocas,
Ane
Sylvia, muito obrigada! Ótimo começar o dia com um texto lindo assim.
Coloriu minha alma e meu dia.
bj
Sylvinha:
Que belo brinde à vida, que oração mais doce pelo dia que amanhece e todos os sons e cores que se anunciam! Quando assim interagimos com a natureza, o fardo das horas como que soa como canção de ninar...
Beijos!
E digo: Um expetaculo de palavras e sentidos divinamente bem medidos!...
beijos meus!
É isto aí Sylvia, no momento em descobrimos que a felicidade está nas pequenas coisas e nos pequenos gestos , um novo olhar, e abrem-se perspectivas mil de um dia melhor ...por vêz ...para que a sensação de plenitude seja sempre buscada. Amei seu texto, tenha um belo dia de segunda-feira. Olha se quiser dá uma espiadinha , hoje é o aniversário do meu primeiro Blog, adoraria sua visita.
http://clodet.blog.uol.com.br
Como todos os outros, teu post está maravilhoso!
Tuas palavras são uma explosão de emoções e amor pela vida.
Um beijo no coração!!!
Todos os dias são dias de... basta deixar os olhar pousar nas mãos das trivialidades como código supra-linguístico que dá sentido à vida e que aquece o coração dos homens.
Sê bem regressada, Sylvia!
Beijinho!
Lindo texto. Nada melhor como terminar o dia com um texto como o seu! escreves demasiadamente bem.
beijos
Isso que li é poesia pura, límpida, da mais alta qualidade. Fico absmado com o seu poder de escrita. Tem mais uma história de Euclides no Sub Mundos. Bjus.
http://submundosemmim.blogspot.com
"estou de volta pro meu aconchego, trazendo na mala bastante saudade...!"
Que bom que você voltou! Fez da nossa segunda um dia especialíssimo!
Beijos!!
Tudo vale a pena quando a alma não é pequena. Vejo que a sua não é, o simples vira mágico, raro e poético. Nada de rotular os dias, os meses, os anos. Vamos encarar o novo, como dávida, luz, para novos caminhos.
Grande abraço!
Thales Willian
Isso que eu chamo de uma mensagem otimista e pra cima, uma pena que tenhamos de voltar desses devaneios.
Sylvia,
Esta mala está bem feita. E não foi feita "no susto"...
;)
Beijo.
bem-regressada, Syl.em todos os sentidos.gostei do recheio da mala.
beijo
Lindo texto, realmente faz a gente querer aproveitar tudo da vida, cada gota desse suco vital... E que venham as incertezas, que venham as desilusões para que possamos aprender e tornar isso uma parte até mais doce da gente. Lindo o texto, sua sinestesia inspira uma coragem absurda.
Beijocas
Líria
Esse ritmo... Kerouac? Vinicius de Moraes?
Li e quando terminei disse "ué! parecia mais longo...". Vai ver foi tal ritmo, foi a escolha de palavras, ainda que não minuciosa, vinda direto da cabeça para o monitor, li rápido, tal fosse curto, ainda que não fosse. Gostei, por assim dizer escondendo um tanto de inveja.
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