Foto do blog: Mario Lamoglia

quarta-feira, 5 de maio de 2010

Degradação *

A criatura já virou estátua, múmia ou qualquer coisa que não se mova sem vento. Parece que brotou lá, no âmago do boteco mais imundo que já vi na vida, surgindo soberba do meio das engulhantes poças de cerveja-insone e suor-mal-cheiroso. Com cabelos em pleno incêndio, entupidos de laquê endurecido, despenteados com todo o zelo pro alto, mas bem pro alto mesmo, ela nem pisca. Olha adiante, embora me pareça amordaçar o passado a todo instante. Ela grita sem emitir um único som. Não sei como ou quando se aninha, nem em que condições vai embora, mas é certo de que ofusca os olhos de quem passa a qualquer hora, estupidificada que se faz por paetês, balangandãs e cintilantes afins, pleno sol à pino. Dos pés à cabeça ela reflete. É tanta ruga, mas tanta ruga, que a maquiagem pesada faz crosta no meio dos sulcos. E o batom, nem precisava dizer, corre confuso pelos tons de vermelho: sangue, cereja, morango, chaga aberta. Isso, quando não se faz perceber camadas sobrepostas de todos eles juntos - uma cicatriz sentada na outra. Tem sempre uma cerveja aberta, já reparei, um copo cheio e uma companhia - que nem sabe seu nome e está sempre de costas. Nem deve ter nome. Sequer ser chamada. Tampouco parece respirar, ou sorrir, ou chorar. Toda vez que passo por sua mesa cativa, meu coração procura por ela. E ela está invariavelmente lá, implacável, em seu mundo distante. Em um mundo próprio de brilhos e sonhos.
Toda vez que passo por ela, ela vai embora comigo.
Toda vez que passo por ela, ela se deixa levar.
Pra qualquer lugar.

Sylvia Araujo






* Esse texto já foi publicado há quase um ano, mas como nunca mais vi essa mulher e ainda assim ela continua a latejar em mim, resolvi dividi-lo com vocês mais uma vez.

29 comentários:

Valéria Gomes disse...

Terá ela, ficado presa ao passado?
Sua tristeza e desalento, terá consumido todo o resto?
Bom, se sumiu, torço para que tenha se reencontrado. Para que tenha encontrado vontade de viver novamente. Post curioso!

Um abraço no coração!!!

Anônimo disse...

Ótima crônica, imaginei toda a cena, até sua expressão.

Beijos, Sylvia!

Rafa Feck disse...

palavras com força, não a força que molda musculos, mas aquela que faz um texto sair daí-sei-lá-onde-tu-tecla e vir aqui-onde-tu-nem-sabe-que-eu-te-leio e me arrancar suspiros, a força que me faz querer escrever ao ler um texto assim!

abraço

Rafa Feck

Juan Moravagine Carneiro disse...

belo texto...

...bela espaço o seu!


Agradecido pela visita e pelas palavras no Rembrandt.

Retornarei com frequência o seu espaço.

Anônimo disse...

Querida Sylvia

venho agradecer a tua presença no intimidade e dizer que talvez esse seja o absurdo de escrever: perder o folêlo!...rs Portanto, digo que por aqui, a asfixia é a mesma!...quero mil vezes morrer aqui. morrer assim é a morte mais doce e justa!...

Espero que a mulher adormecida, possa sempre voltar a si sempre em grande estilo!..


beijos!

RICARDO disse...

Esse é o tipo de texto que estimula a gente a continuar escrevendo.Muito bom.
Bjo

*Aproveito para agradecer sua visita no meu blog.

Anônimo disse...

Não vou ficar elucubrando coisas bonitas...
Você é foda!
Quando eu crescer quero ser assim!
bjo...

Jorge Pimenta disse...

Vou-te dizer, Sylvia, tu consegues trazer para o papel muito mais do que a mulher radiografada deixa entrever; está lá tudo: a degradação exterior (que o comum dos mortais consegue captar), mas também, e sobretudo, os fracassos, as desilusões, as bofetadas, o incumprimento, a incompletude... que apenas o olhar de alguém atento, e ainda mais humano que aquela estátua semi-viva onde pousas os olhos, consegue ver.
Bravo!

Em@ disse...

Na crueza do retrato,vislumbra-se a imensidão da tua alma Syl.Revi tudo através do teu texto e sbes que me apeteceu captar a imagem dessa mulher-estátua-presa-ao-passado-talvez-com-com-medo-de-desaparecer- aos olhos dos outros?

beijo

Luna Sanchez disse...

Tem figuras que marcam, mesmo.

Beijo.

ℓυηα

Arnoldo Pimentel disse...

Seu texto é forte e perfeito, bom demais mesmo.Parabéns.Arnoldo Pimentel

Juliana Carla disse...

Sylvia,

Presença marcante... Até pela leitura percebe-se. Por isso ainda ela triunfa em sua mente!

Bjuxxx e xerooo

A.S. disse...

Sylvia,

Um belo texto, que deixa bem marcada a emoção com que escreveste!


Beijos
AL

Moni disse...

Ela se deixa levar
Ela vai embora comigo

As vezes queria me deixar levar, deixar de me policiar, deixar de falar o que penso na intenção de afastar me de tudo e de todos, ao ponto de que alguem um dia fique .

bjos querida

Paulo Rogério disse...

Olhar profundo. Belos sylvidos! Adentrar no ambiente desses personagens impuros e degradantes é, de alguma forma, ampliar o conhecimento de nossas misérias e de nossa própria humanidade. Que produza crias essa sua forma de fotografar a vida!
Beijo!

Líria disse...

Impressionante o seu talento pra escrever, linda a crônica poética, adorei o texto... Consegui imaginar a cena ao ler o texto, as cores da cereja, morando... Parte disso levei comigo


Beijinho e ótimo fim de semana

maria claudete disse...

Será esta mulher mera ilusão ou o fantasma que assombra a finitude estigmatizada para qualquer uma de nós? Seja como for , nos obrigamos a refletir sobre este funil da solidão. Muito forte seu texto amiga e muito instigante.
abraços.

H L disse...

cara, que forte!
imaginei aqui toda a cena, toda a estória.
muito bem escrito, muito bom meeesmo!

Paz... disse...

eu devia uma visita... fiquei sem saber qual era teu blog nº 1, e me pareceu ser este aqui...
muito bom, os dois.
bjos!

Rafaela Costa disse...

Oi,
Adorei conhecer seu blog.
te seguindo pra saber de tudo q rola por aki.

Bjs,
Rafaela

Taynara Irias disse...

Sempre me vem milhares de pensamentos e emoções quando leio suas palavras.
Belo texto!
Beijos.

Solange Maia disse...

Sylvia,

dessa vez precisei deixar registrado : fantástico texto !

senti as entrelinhas, e sabe do mais ? também nunca vi esta mulher, mas ela me parece tão familiar....

beijo carinhoso

Ilaine disse...

Ela em seu mundo tão específico. Ela muito ela, mas que se deixa levar...

Sylvia, outra vez um escrito que marca, que fica, que me carrega "pra qualquer lugar." Intenso e belo!

Beijo

Unknown disse...

Supimpa!

ela vem e vai sempre? fica tranquila, deixe-a com você...

um beijo

Marina disse...

lindo texto!

vou voltar por aqui ;)

Unknown disse...

Excelente, como sempre! :)

Mas estou aqui para oferecer ao "Abundante-mente" o Selo Prêmio Dardos. É uma singela amostra de minha admiração por teus belos textos.
Os detalhes sobre o prêmio estão na última postagem do meu blog:

http://lacunasdotempo.blogspot.com/2010/05/selo-premio-dardos.html

Espia lá! ;)

Beijinhos,
Ane

Em@ disse...

Syl, olá!
no Em@ há uma coisa à tua espera. :)
beijo

Bruna Fernanda, 29 anos! disse...

Existem figuras marcantes
xP
^^
bjo

B. disse...

Esse está entre meus 10 mais.
MUITA saudade de você. Te amo taaaanto!