Jorge era um rapaz sisudo. Desde criança nunca foi de muitas intimidades. Falava pouco, não contestava as regras e raramente se aventurava fora do seu próprio mundo. Passava horas trancafiado no quarto, sem que ninguém ouvisse a sua voz. Na adolescência, se tornou uma pessoa ainda mais fechada. Laura ficava intrigada com a falta de brilho do filho, percebia que ele não tinha amigos e estudava demais, mas nunca quis interferir. Achava que respeitando a sua personalidade introspectiva e não lhe fazendo perguntas demais, conquistaria a sua confiança - além de poupar a si mesma o desgaste com as intermináveis e infrutíferas discussões familiares. A relação dos dois sempre foi extremamente superficial. Mãe solteira, Laura trabalhava à exaustão. Viajava dias seguidos, vivia no telefone, e quando estava em casa costumava abusar de soníferos fortes, para apagar por horas seguidas. Numa casa confortável, mobiliada com esmero, mãe e filho eram como estranhos que dividiam o único banheiro. Num dia de cansaço extremo, Laura encerrou o expediente mais cedo. Quase chegando em casa, notou na esquina uma movimentação diferente, pessoas aglomeradas, gente nas janelas, e no meio do asfalto estreito homens e mulheres criavam um engarrafamento fora do normal. Percebendo que a confusão se concentrava na frente do prédio de dez andares, apressou o passo no ritmo do coração. A ambulância parada em frente à portaria, com as luzes vermelhas girando sem parar, fez seu estômago embrulhar. Quando abriu espaço entre a multidão e viu o filho estendido no chão, sua respiração parou. Piscou uma, duas, três vezes sem conseguir sair do lugar. Jorge estava nu, de bruços, cheio de marcas cicatrizadas de cortes fundos nas pernas e nos braços, com os cabelos lisos espalhados sobre uma poça enorme de sangue emoldurando seus olhos abertos. Com a alma dilacerada e o coração vazio, Laura ajoelhou ao lado do filho e contou a ele como foi o seu dia. Perguntou da escola, dos amigos, dos filmes e músicas que ele mais gostava e disse - enquanto afagava seus cabelos molhados - que iria comprar batatas fritas, para comerem juntos na mesa da sala. Com as lágrimas pesadas escorrendo pelo rosto, a mãe abraçou apertado o corpo frio e franzino do filho. E até o momento em que o chão úmido sumiu debaixo dos seus joelhos e seus olhos febris não viram nada além de uma nuvem branca muito densa, ficou repetindo e repetindo e repetindo incansavelmente: eu te amo, meu filho.
Sylvia Araujo
21 comentários:
Olá, Sylvia!
O teu texto que escolhi para afixar num enorme plátano da escola é "Concomitantes". Um relato poético do real (um pouco ao jeito de "Crash").
Beijinho!
por que razão as coisas só se tornam importantes quando estão encarceradas no tempo do não retorno?...
Não concordo Jorge!
Elas "estão" sempre importantes em qualquer tempo,é o encarceramento que se faz na nossa alma que não consegue validar o bilhete do hoje!
Beijos!
Sylvia, impressionante como você disseca as relações humanas! A nossa realidade atual está repleta de desfechos similares ao de sua crônica... Seu texto, porém, não é mera notícia de jornal... É para reflexão, e os nossos dias só fazem sentido, se vivemos 'com se não houvesse amanhã...'
Beijos!
Um amor de mãe tardiamente declarado, onde os ouvidos não podem mais escutar e o coração não mais pode sentir.
Uma crônica chocante, de tão real que é.
Você é ótima nisso, Sylvia, em retratar a realidade com essa intimidade que você tem sem pertencer ou vivenciar tais coisas.
Um abraço.
Texto sensacional, muito bom mesmo....Mas história triste! .....
Beijos
Eis um caso, para ser refletido. Trata-se da realidade nua e crua. Mais uma vez, você foi incrível, Silvinha. A tua forma de descrever fatos, seduziu-me para sempre.
Eu me rendo, pode me levar pelas mãos.
Beijo grande para ti!!!
Incrível, realmente!
Uma narração perfeitinha, que revela tanto sobre as relações atuais...
Lindo, lindo, embora triste...
Um texto que nos faz refletir, olhar pra dentro, pra fora e pros lados...
Obrigada, Sylvia, por nos abrir os olhos...
Nossa amiga esse texto me comoveu.
Eu tenho filhos e tenho medo de algumas vezes deixar a desejar como mãe.
A vida da gente anda tão corrida q ficamos cegos ao q acontece a nossa frente e muitas vezes ñ nos damos conta da necessidade dos filhos.
Depois dessa, ficar de olho mais ainda.
Paranénssssssssss.
beijokas.
Sylvia,
essa situação eu conheci de muito perto, sabe? Uma família próxima da minha perdeu uma filha desse jeito. A morte dilacera. O suicídio eu nem sei, não tem nome. Creio que o silêncio, nessa hora, seja o melhor consolo. A gente não entende, ninguém entende. Por que quer-se a morte? De onde vem a coragem pro ato? Qual o último pensamento?
Ao menos alguém há de aprender a lição. Do jeito mais dolorido possível, mas o que se há de fazer?
Boa tarde Sylvia!
Pais ausentes... Filhos ausentes!
No caso a mãe procurou o filho devido à curiosidade?!
Mesmo tarde disse “eu te amo”... Espero que não foi ao vento.
Parabéns pela história!
Bjuxxx e xerooo
Um texto muito triste mas acaba sendo um retrato fiel de muitas situações reais. Tem texto novo no Sub Mundo. Bjus.
http://submundosemmim.blogspot.com
profundo texto... é o cotidiano descrito com tintas fortes porem que nos leva a concluir que quando se ama, a demonstração do afeto não se coaduna com espera de momento certo ...depois pode ser tarde demais.Abraços.
Muitas vezes deixamos para o último momento coisas que deveriam ter sido feitas por toda a vida.
Beijo, moça.
Meu Deus, que angústia eu senti!
...
=**
ℓυηα
Seu texto-alerta é como se dissesse: depois que a pedra acerta o vidro não há remédio.
Abraço!
Comovente e muito profundo seu texto.Parabéns.Arnoldo Pimentel
Mais um texto que me deixou emocionada. Vc tem o dom para isso, rs
Sylvia:
parabéns por ter (d)escrito, tão realisticamente, um caso de falta de comunicação, mais comum do que pensamos, nos dias de hoje.
passamos uns pelos outros como se fantasmas fossemos, muitas vezes concentrados no nosso pequeno mundo.outras vezes no mundo lá de fora...
e é tão fácil partilhar...é só querer.olhar mais para o espelho e ver-se no outro, em vez de desviar o olhar para a janela para o deixar perder-se...
1 boa noite, Sylvia, com paz e saúde.
deixo um beijo
sabe que tou curtindo, há um bom tempo, estas cuspidas.
Escarra na minha cara, escarra?
=]
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