Bela acabou de fazer seu almoço às três. Experimentou uma receita nova, usando ao léu todos os temperos cheirosos do armário. Comeu com o nariz, antes de levar a primeira garfada à boca. Terminando a refeição, deu onze passos até a cozinha e pousou a louça na pia. Mais dezesseis passos e estava tateando as gavetas do armário. Abriu a terceira - aquela que guardava os vestidos fluídos de flores - e pegou um de alças. Escolheu com a ponta dos dedos a sandália aberta de tiras de cor neutra, que ficava do lado esquerdo da sapateira. Penteou os cabelos com as mãos, alisou o tecido fino no corpo, pegou a bolsa pequena e chamou Gentil. O cão já esperava alerta na porta, com a guia na boca, e balançou o rabo ao som suave de sua voz doce. Bela acarinhou as orelhas peludas do pastor, enquanto encaixava o couro macio em seu peitoral maciço. Aproveitou o dia de folga pra fazer uma caminhada e, como já imaginava, assim que pisou na calçada foi abraçada pelo toque quente dos raios de sol e pelo cheiro das flores - que suspiravam primavera. Entrou na sorveteria da esquina e pediu um sorvete de amoras de sobremesa. Ela adorava as frutas vermelhas. Mesmo sem nunca na vida ter visto esta cor, todos os seus sentidos sempre a levavam para ela - era quente, tátil, envolvente. Sentada na mesinha do lado de fora, na cúmplice companhia do cão guia, deixando escorrer com prazer pelos dedos a poesia da amora em forma de creme gelado, ouviu um homem falar baixinho:
- Morro de pena dessas pessoas que não enxergam. Quando são jovens assim, então...
Isabela inquieta, não se conteve, e andando insegura na direção da voz, disse:
- Com licença senhor. Se me permite compartilhar, eu também tenho muita pena dos cegos. Essas pessoas engravatadas, que vivem correndo, quase não vêem seus filhos, e não tem tempo pra nada, me afligem a alma, sabe? Não apreciam uma música inteira, não mantêm um momento de abraço, não se deliciam com um sorvete numa tarde de sol... quanta tristeza. Como pode? Alguém deveria urgente ensiná-los a enxergar. Mas não com os olhos, senhor, com o coração.
Como quem sabe das coisas, Gentil esfregou a cabeça nas pernas da dona e lhe lambeu a mão toda melada de amor. Deu um latido breve como quem diz - vamos!, e puxou de leve a coleira, enquanto o homem ainda engolia as palavras - uma a uma. Bela desejou uma boa tarde, sabendo pelo silêncio que conseguira tocar alguém. E seguiu para a praça para ouvir o dia e ver - com seus emocionados olhos do coração - a vida que insistia em se mostrar bonita, sem que ela tenha precisado um dia sequer, abrir os olhos e decifrar sua escrita.
Sylvia Araujo
27 comentários:
Uau!
Intenso demais...
Saboreei cada palavra aqui, com o coração,
e desejei ser menos cega...
A gente acaba se anulando com a vida tão dificil...
beijo.
Há que ter olhos para sentir e mãos para enxergar. Abraço.
E quem enxerga com o coração, enxerga muuuuuito mais... :D
Beijos!
Adorei!
Tanta gente 'vê', mas não enxerga o que está bem diante dela.
Certos membros da sociedade sentem pena de pessoas com deficiências por pensar que são seres limitados em todos os sentidos, tristes por certas incapacidades, mas esquecem de se compadecer das próprias deficiências, das próprias falhas.
Eu sou deficiente e sei bem o que é isso. Detesto que sintam pena, que me tratem com supervalorização. Acho que qualquer pessoa que tenha uma deficiência quer apenas viver seus sonhos e ser alguém preto e branco na sociedade. Quero dizer, nem chamar atenção de forma 'penosa' e nem de forma de supervalorize, nos tornando super-heróis. Eu não sou exemplo de vida; não pela superação que eu faço todos os dias em relação a minha deficiência. Todos superamos várias coisas ao longo dos nossos dias, dos nossos anos, enfim, da nossa vida. E nem por isso os 'normais' jogam confetes nos outros 'normais'. A sociedade precisa entender que todo deficiente só quer espaço para ele ser sem frescuras e ser 'tapinha nas costas'.
Supervalorização sufoca; desvalorização deprime. Deve ter um balanceamento nisso. Uma coisa mais exata.
Bom, desabafei, rs. O comentário ficou extenso, né? Me perdoe.
Beijo.
Tem selinho p vc no meu blog!
Bjs! Lu
Ah, que texto Bom!
Adoro essas lições cotidianas, é como um sacode para enxergarmos a realidade e a nossa ignorância.
Entendi LOGO que ela era cega, no momento exato que ela escolheu os sapatos! :D
Gostei muito, gostei muito do seu jeito de trabalhar com as sensações, eu amo ler isso.
" Sylvia Araujo
Apaixonada pelas sensações. Pelas cores, cheiros, texturas... Pelos sons e sabores da vida. Meu desejo (mais que secreto) é reinventá-los. Todos - Quiçá o mundo!"
Você se descreve muito bem.
Obrigada por comentar no meu Blog. Beijos ;*
muito lindo, sylvinha.
Ei!
^.^
Belo texto, Sylvia. Adorei!
Beijoooo.
Pedro Antônio
Belo texto, emocionante!
Transmitiu muitas sensações boas, leveza, amor, e uma lição de vida , Bela nos passou!
Érica, tentei te mandar um email e não consegui, então transcrevo aqui o que te escrevi:
É isso, Érica. Você ainda pode falar com conhecimento de causa, porque vive isso. Eu apenas observo, e sinto em mim essa pressão que cai sobre os outros que são diferentes. A Bela, do meu texto, não existe enquanto uma pessoa concreta, mas ela representa todo mundo que passa pelo que ela passou, independente de ser cega, ou não. Adorei seu comentário, era essa mesmo a discussão que eu queria provocar com o texto.
Uma beijoca enorme pra você.
A cegueira do coração é a pior cegueira !!
linda pontuação a sua !!
Um abraço bem apertado
Sylvia, passando pra agradecer a visita e ver seu cantinho. Adorei! Repleto de sentidos também, não é? Já virei sua "seguidora" rsrs.
beijos e linda semana pra ti!
Que lindoooooooo Syl!
A gente tem que enxergar com o coração, com a alma, com tudo.
Um beijo nesse coração que reluz LUZ!
Syllll, tá lindaaaaaaaaaaa na foto!
Como se diz pior cego é o que não quer ver...
beijos menina, linda semana
Adoreiiii!!!
Lindo demais seu texto!!
Ínfelizmente existe muita gente que esquece de exergar com o coração!!
Está sendo seguida! Bjos!!
Anjos de Patas sempre nos surpreendem. Belo texto.
Grato por sua visita e deliciosa fragrância que deixastes no post "Conflitos Internos" Muito gentil.
Também Comemoro hoje 12 de Abril, o 1º ano que voo nesse universo bloguístico. Traga sua fantasia em Verso, Prosa,Conto,Poema, POesia ou simplesmente venha de " Oi Cheguei...""!!!
Forte Abraço com muitas bençãos.
Alôha,
Hod.
Òtima Semana para você. Valeu pela visita, seja sempre bem vinda.
bjo
Oi Sylvia!
Adorei sua visita e seus comentários!
Complemento o que disse a Sônia Schmorantz, para mim o pior "cego" é o que pensa que enxerga pois não há como fazê-lo mudar o foco e olhar de forma adequada o que precisa ser visto. Érica, você tem razão, deveríamos sim dar condições iguais aos que nasceram diferentes.
Há-braços para todos!
É lindo esse jeito de enxergar sentindo, que texto maravilhoso!
BeijooO
Completamente instigante, adoro textos assim. to adorando esse cantinho!
parabéns flor .
"O escondido"
http://encabuladas.blogspot.com
Realmente,deveríamos chamar de cegos aqueles que não enxergam o invisível, as verdadeiras raízes da vida, como o amor, a empatia, a solidariedade e a rica oferta das sensações que nos unem ao todo.
Obrigado pela sua luminosa visita. O seu comentário fez com que me sentisse recompensado.
Uma abraço.
O que pretendes, fazer-me chorar?
Que coisa mais linda e profunda! Penso que se todos enxergássemos com os olhos do coração, não existiriam a miséria, guerra, trabalho infantil, crimes, etc. A mais pura verdade, é que há cegos que vêem e vivem a vida muito melhor do que nós, que somos donos de olhos saudáveis.
Um beijo terno para ti!!!
Obrigado pela visita sylvia. Meu buteco tem atualização toda semana de segunda a sexta! Pode aoparecer a hora que for. Sinta-se beijada e abraçada tb.
Muito bonito o texto! E é isso mesmo, temos que valorizar tudo, independente das condições físicas, sociais, financeiras... pequenas alegrias fazem muito mais diferença dentro de nós.
Beijos!
O coração consegue olhar além daquilo que os olhos enxergam. Tem texto novo no Sub Mundo. Bjus.
http://submundosemmim.blogspot.com
Adorei a sua história. Para além do conteúdo, uma verdadeira lição, vc sabe contar histórias... pois a sua narrativa é muito agradável.
Querida amiga, boa semana.
Beijos.
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