Foto do blog: Mario Lamoglia

quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

(pelo) Vão



Teus olhos gritam um silêncio hercúleo. Daqui te ouço, Maria, sou só pedaços. O final da rota te entupiu de ecos, sob escombros treme esse teu peito murcho, já não há sorriso, a lembrança é rala, o amor é sépia, amanhã chegou? Onde está teu rio, tuas meias margens? Por qual das caixas, aquele teu lilás? E essas mãos aí, tão sedentas, imóveis; tão lacradas, sujas; e essas rugas vastas - todas rastros vãos? E esses teus olhos turvos, que eu não vejo e sinto? (nos teus olhos bebo o cheiroazul do mar). Não vá tão logo, que a esquina é perto, o coração é reino e muito mais suporta, o sol aquece sem nenhuma prece: não vá perder-se pra não mais voltar.

Teus olhos berram, Maria, é sede!
Sylvia Araujo

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Ajardinar

Lavra as palavras, feito terra, uma a uma - aduba. Escolhe a dedo o que te sai da boca, do peito, dos pés - caminha. Abraça os desvios, traça outros planos, em mil atalhos por aí, se encontra. Dos poros, permite só o escorrer do suor; é fevereiro, enfim, não há fuga. Já do amor, salgado e doce, exige nada - planta e rega e ama, claro, pra fazer germinar.  

Lava os sentires na corredeira do rio, os cabelos no mar - abre os braços, boia. Retém a maré do lado de dentro, escreve - escreve e canta, não esquece de cantar. Mas cala, também, que palavra é raiz e broto de asa sempre exige silêncio. E respira. Dança, salta, rodopia - escorre -; horizonte é feito de sonhos-nuvens, o dia a dia é hoje, irrevogável - vive.

Leva embora o que não te cabe, deixa sumir o que não te abraça - segue. Soluça as tristezas baixinho, observa os gatos, lambe as feridas. Cicatriz não mata, não mesmo - renova o foco, resiste. Escancara o peito pra esse sol que insiste em ser sempre o mesmo e ao mesmo tempo outro - transforma. Os medos, os cercos, os charcos - abandona. E lavra e lava e leva - que o deserto se ocupe em florescer por si. 

Sylvia Araujo