Foto do blog: Mario Lamoglia

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Aos exaustos, pérolas

Chove ainda, menos que antes. Daqui, pela janela escancarada, assisto, enlevada, ao incessante e sedutor desfile das translúcidas gotas em queda livre. A poesia abranda o som estridente do alarme abusivo que, de tempos em tempos, arranca pessoas de suas casasraízes para plantá-las em lugar nenhum. Vejo pérolas, por segundos, abotoadas ao longo dessa cortina esbranquiçada que se esparrama até onde minha turva vista alcança; escuto gritos. 

Uma criança chora, aflita com o rugido assustador da máquina que lixa a madeira recém colocada no chão da sala vazia. A mulher a sacode, imagino, impaciente com o pavor inútil do choro sentido e irritada com o denso pó que colore de ouro o abafado ar que mal respiram. Na rua enlameada, guarda-chuvas estampam estreitos rios multicores no cinzapagado do dia, que atravessam inteiros os impermeáveis tecidos para desembocar, todos, em uma rasa poça qualquer. 

Um homem vocifera impensáveis palavrões, enquanto uma buzina grita, furiosa e irascível, bem exato na esquina do hospital que nunca tem lençóis limpos ou leitos. Alguém acabou de morrer no segundo quarto do terceiro andar; sua cama de vivo, vazia, se mantém virada, impassível, para um descarnado e imenso muro cinza. Seu anoitecer fez a sorte sorrir para o próximo finito da infinita fila que se estende, resignada, ao longo dos pútridos corredores abarrotados de lonjuras. 

Do lado de fora, apoiada a um frágil arbusto que agradece a água depois dos tantos ontens a 40º, uma negra senhora, vestida de lenço e terço, embaralha, ao som de incompreensíveis orações, o sal que lhe irrompe das pálpebras frouxas às pesadas lágrimas que vazam dos céus; a chuva aperta, a dor dói. 

Num apartamento distante de raras mobílias, pequenas e regulares barras em pêndulo dedilham, alegres e isentas, a música que brota dos compridos e mornos ventos sem direção. Ao longe, a massiva voz da desgraça é ouvida em vários tons, grave uníssono escapulido das muitas bocas que habitam as polegadas das tantas caixas alienantes e suas falsas vazias sintonias. 

O dia chora, enraivecido por esse mundo imundo, de tanta cobiça e inveja, de tamanho desamor e abandono. Mas a beleza insiste e, quixotesca, resiste, implacável, no mergulho macio da reluzente colher em alva farinha, no acalento da cebola que abraça os dentes de alho no fundo oleado da antiga panela de ágata, no chiado baixinho do azeite que se mistura ao tamborilar quase eterno das gotas elípticas no chapéu gasto do fino teto. 

E o encanto renasce, a cada nova cor que explode no pequeno jardim; a cada coreografada revoada dos pássaros, que ensaiam rasantes ousados entre os úmidos blocos inertes de concreto; a cada dia que nasce e morre, enchendo de amanhãs, no fim, o peito de quem, por hoje, exauriu. 

Sylvia Araujo