Foto do blog: Mario Lamoglia

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Nuvens, céus e sóis

Quando está em silêncio no meio do quarto, brincando com pedaços recortados de papelão sem uso, tenho a impressão de ver, no fundo dos seus olhos de criança, o despontar de uma reluzente estrela cadente. Às vezes sacudo a cabeça, de um lado pro outro, pra espantar a claridade que escorre da sua boca, entre barulhos de locomotivas e sirenes. Quanto mais desacredito, mais forte fica a luz. E tão quente, que o suor me escorre pelas pernas, mesmo enquanto me mantenho invisível atrás da porta azul. É bonito ver o que sempre acontece depois: ele fecha os olhinhos, e os braços pequenos se esticam em infinitude de pássaro. Um sorriso branco e levinho vai nascendo bem devagar, no canto direito da boca, e se esparramando feito pipa colorida em céu sem nuvens. Quando transborda, o rio toma inteiro seu corpo franzino e o umedece todo em gargalhadas nuas. Contenho o riso, pra não perder a miudeza do enrolar das transparentes contas de horizonte em seu pescoço de menino. Depois disso, quando já é todo nuvens, céus e sóis, me olha com aquele rosto puro de brisa e pergunta, resplandecente: quer brincar também, mamãe?

Sylvia Araujo

sábado, 25 de fevereiro de 2012

Mantra


Fazer o bem, todos os dias, amém.

Sylvia Araujo

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Deslembrança

Num desses dias de verão, sentindo na pele escorregadia o calor viscoso que subia do asfalto durante o susto da chuva inesperada, fiquei parada ali, na esquina da rua vazia, com um dos calcanhares apoiado na quina imunda do meio-fio, os cabelos encaracolados já meio esticados encharcando aos poucos, a blusa de algodão quase sem cor prestes a admitir uma transparência beirando a indecência e as lentes dos óculos acumulando, impassíveis, um monte de micro-gotículas arredondadas cor-de-chuva. 

Não me lembro muito bem porque estava parada exatamente ali, naquele lugar, mas sei que observei horas a fio, quase compulsivamente, as gotas pesadas e urgentes formarem poças enormes e se esparramarem em rios, do meio pros cantos do chão esburacado. É impressionante como a prefeitura não dá a mínima, mas disso a gente já sabe, pras crateras enormes que se formam e aumentam a cada dia mais aqui onde eu estou agora, que é onde eu estava quando chovia e de onde não me movi nem um passo desde então, sei lá onde isso fica ou de que maneira eu vim parar aqui. 

A questão é que, assim como a prefeitura, os donos dos carros de todas as cores e tamanhos e anos, com IPVA quitado ou não, não importa, também não dão a menor bola pros buracos, muito menos pra chuva, forte ou só aquela finíssima cortina incolor, que se foda, e eu me lembro como se fosse hoje, que nesse dia passavam quase voando, com a ansiedade própria de quem tem aonde chegar. Eles, comprovadamente, pode observar, têm mesmo muita pressa quando chove e, como sempre diz a minha mãe, quando a tempestade resolve dar o ar da sua graça, naquele dia chovia à cântaros. 

Eu estava vendo tudo, desde o início, e me mantive muito atenta aos carros, todos eles, que corriam como loucos carregando pra longe uma ou duas pessoas, às vezes três, que inevitavelmente embaçavam os vidros fechados com as suas respirações asfixiadas e quentes como o verão. As rodas, que ninguém via porque estavam afogadas em tanta água, nem eu, que estava ali alerta há tanto tempo que nem me lembro quanto tempo foi, abriam apressadas uma estrada no meio do rio do meio da rua e, quando sumiam na esquina alagada, deixavam pra trás um rastro de cor, no tom exato da lataria do carro, misturado com o tom dos meus olhos marejados, mais o tom da chuva branca às vezes quase-azul. 

Eu não sei te dizer no que eu estava pensando enquanto me mantinha parada ali. Na verdade, nem sei te dizer se estava pensando em alguma coisa, qualquer coisa de concreto, ou se simplesmente eu era só um vazio em pé, debaixo da chuva forte, misturando as minhas lágrimas salgadas àquela água adocicada que caía do céu, esmaecendo as lembranças, deixando de ser qualquer coisa que um dia eu já tivesse sido por mim ou por alguém. 

O fato é que fiquei ali, com o meu all star branco lentamente acinzentando pra combinar com o céu que era muito cinza, que era quase preto nesse dia estranho, observando e vivendo a chuva, o asfalto, os buracos, os carros, e eu te juro que não me resta nada além de uma vaga lembrança de que talvez, e eu digo talvez porque os fatos me faltam e só me restar imaginar os porquês de todo esse equívoco, aquele tenha sido o dia em que eu finalmente decidi que iria me esquecer de vez.

Sylvia Araujo

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

Pecadora e herege. Infeliz, nunca.

Quando você tem um problema dos grandes, as pessoas esperam te encontrar com a pele sem viço, com olheiras enormes, com dez quilos a menos e um monte de tristeza escorrendo pelos cantos dos olhos. Sorrir vira pecado. Cantar, então, se torna quase uma heresia. Parece que esperam que você cultive a dor e faça dela o seu jardim incolor, até que tudo se resolva - até que o problema não exista mais. Acontece que eu não vou fazer dos lamentos a minha música. Não vou deixar de amar, de dançar, de gargalhar, de aproveitar os mínimos momentos e ser feliz apesar de, ainda que. O problema não vai se transformar em fracasso, simplesmente porque eu não fui capaz de recomeçar, ou porque não tive a presença de espírito de zombar da cara dele, quando quis me derrubar - e desisti de seguir. O meu mundo não vai se espreguiçar cinza todas as manhãs e eu não vou me tornar um poço árido de rabugice e agressividade - não esperem por isso. Todos os dias, dou bom dia ao dia que levanta e vou. Pra que, quando no fim tudo enfim desanuvie, eu seja capaz de agradecer a mim mesma por ter conseguido mais uma vez e tenha alegrias  suficientes estocadas para superar os muitos mais, que infinitamente virão - até que a morte nos separe, amém.

Sylvia Araujo

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2012

Ruminante

Me faz falta dividir o silêncio com o teu não-dizer. O barulho das folhas virando, a fumaça dos cigarros dançando, o cheiro do café cor de piche - o baseado apertado, sempre à mão no cinzeiro. Caymmi ensolarando os dias chuvosos, Edu fazendo chover aqui dentro, os choros, os sambas, os jazz - você. Teu violão de cordas novas, tua voz liberta enchendo a casa, eu fingindo que nem via, pra deixar o teu momento inteiro - só pra te observar ser, comigo invisível ali. Aquela janela que adivinhava o azul do dia, enquanto a vontade de ficar estirada se espreguiçava no corpo exausto das tantas noites embaixo de ti. Eu esticava o olhar, de vez em quando, pra matar a saudade das horas seguidas em que a tua barba mal feita, tão linda, ficava sem roçar o meu corpo, enquando brilhava sob a nesga de sol. Você via? Eu só queria aquele quase-nada que era tanto, tanto!, que meu sorriso abria só de te ver dormir. Você roncava quando bebia demais. E falava sem parar, os olhos brilhando, as mãos bailarinas acompanhando de perto o raciocínio. A sua cara amarrotada, os seus montes de livros, o seu abraço apertado, as horas intermináveis em que dividíamos ideias e música. Eu era sua e você era o mundo. Não é fácil lembrar tudo isso, já faz um tempo que tento esquecer. Mas não deu. Porque muita coisa mudou depois de você. Porque descobri compartimentos aqui depois de nós dois. Porque você dividiu as minhas águas, foi o homem que eu sempre quis e se foi. E eu fiquei, latejando a poesia, a filosofia, a genialidade. E engoli tudo isso com um monte de saliva e lágrimas porque sei que assim, igualzinho assim, nunca mais aqui dentro de mim.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

O amanhã é mais bonito quando dói

Sentir é ultrapassar muros com asas imaginárias. É ter, bem dentro, um jardim inteiro e, nos olhos, os mares do mundo. É carregar consigo o cheiro das terras, o sopro do vento, as gotas de orvalho. E se deixar rodopiar pelo farfalhar delicado e fugaz de uma linda borboleta multicor. Sentir é viver, ser - embevecer-se. É mais do que muita gente poderia suportar. Mas pra quem dói - veja bem se não é assim - o renascer é como brotar sol, por detrás das enormes montanhas, em dia cinzento. É ter o azul se esparramando no peito bem devagarinho e nas pontas dos dedos guardar em segredo a doce magia de recomeçar.

Sylvia Araujo