Foto do blog: Mario Lamoglia

quinta-feira, 11 de agosto de 2011

Tratado das Pequenas Grandes Coisas

Sentados na borda do rio, bem em cima do arremate verdinho de grama molhada, Cecília e Antônio sorriam com as cócegas da água translúcida nos seus tornozelos-meninos. Há algumas rugas atrás, decidiram de comum acordo se fazerem rotina: um pra outro, outro pra um. Pra isso, assinaram no papel manchado do pão doce da Dona Norma que, despencassem canivetes ou balas de goma - ou seja lá o que caísse do céu - todos os dias se encontrariam depois da escola na terceira árvore, dois suspiros depois do barranco do Zé.

Nessa terça de céu azul, o Tratado das Pequenas Grandes Coisas precisou ser esticado na copa da árvore mais alta do campo e ficou por lá dois dias seguidos secando ao sol, porque Antônio não resistiu e lambeu até com as bochechas todo o creme que estava grudado na parte de baixo da folha, bem pertinho do rabo do "o" da palavra silêncio. Cecília achou graça da cara de sem graça de Antônio e riu pra valer, afinal, o item mais importante do combinado dos dois carregaria para sempre a marca da lambida do amigo - a ausência de palavras seria úmida e doce, até que deixassem de ser crianças e brotasse neles a necessidade de dizer coisas e mais coisas para serem entendidos - um dia sempre deixa de bastar o não-dizer.

Aproveitando o muito que é o quase nada dos poucos anos, Cecília e Antônio seguiram os dias com a falta de regras das suas novas regras debaixo do braço. Davam-se as mãos aos meios-dias e, sem trocarem uma única frase, seguiam sem pressa pra beira do rio, onde sol após chuva, chuva após sol, mergulhavam os pés descalços na água gelada e aproveitavam cada um seu próprio mundo, com todo aquele enorme e excitante mundo em comum.

Hoje - Antônio ao sul, Cecília a noroeste, os corações suspirosos da mesma curva - desembrulham as lembranças com todo o cuidado, em pontas de pés, pra não fazer nenhum pequenino barulho; pra não acordar o silêncio que plantaram no peito tão bem plantado e regaram, dos seis aos doze, com aquele precioso papel lambido de pão e pureza.

Sylvia Araujo

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Inferno em poás

Quem me dera um par de asas
coloridos apitos
confetes
línguas de sogra:
carnaval a gosto
num quase-setembro
- quem me dera um ombro
sem tempo.
Um frasco de ar puro
- novo pulmão:
quem me dera eu-outra
não essa dor multidão.

Tem dias, me quero poeira
- rastro pouco
muito vento
(longe).
Quem me dera, sim,
um não:
ecoante e redondo
feito um sonoro palavrão.

Sylvia Araujo