Foto do blog: Mario Lamoglia

terça-feira, 26 de outubro de 2010

Às moscas



Diante do álbum amarelecido pelos anos de clausura na gaveta dos esquecimentos, espantei-me ao ver radiante aquele garoto mirrado. Ostentava, do alto do trono da infância, um sorriso branco e sincero - ainda que incompleto e distante. Já não me recordava daquela felicidade sem pretensões. Daqueles olhos translúcidos, daquele peito aberto - daquele eu sem medo. Esbocei incrédulo, frente à fotografia gasta, um meio sorriso oblíquo. Não pelo que sou hoje - esse velho decrépito, lacrimejante de ontens em preto-e-branco - mas pelo menino inteiro do qual me vesti nos anos idos. Pelo que poderia ter sido e fracassei, acovardado. Por aquele que - pelo acaso dos passos na mata fechada dos sentimentos daninhos, que me atormentaram anos a fio - desencaminhou-se e perdeu-se para sempre de mim. Uma lágrima gorda atravessou-me os vales vincados do rosto. E apreciei, salivando, seu gosto amargo. Como quem arranca de uma vez um naco de vida dos dias mais verdes. Como quem inspira 50 anos de árvore em um só segundo. Eu não queria ter amadurecido. Poderia ter evitado as moscas asquerosas, flutuantes sobre a minha decomposição. Ainda assim, apodreci.


Sylvia Araujo

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Mãos ao alto


Enquadrou o meliante. Depois da revista geral, um tête-a-tête. Assaltante que se preze não desvia o olhar, nem se rende fácil à intimidações. Ele era profissional. Chegou bem perto até as respirações se fundirem. O ar saindo de um e entrando no outro, num enfrentamento cíclico e asfixiante. Com a pulsação acelerada, puxou o gatilho. A bala perdida acertou em cheio e derrubou a seus pés o ladrão de corações. Ela pressionou o salto quinze de leve no vale de sua traqueia - enquanto ele acariciava com as mãos ásperas sua batata branca da perna - e sussurrou entredentes, com um sorriso de canto: perdeu!

Sylvia Araujo

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ao meu rei Arthur



Arthur vem chegando num sopro de brisa. Antes de beijar demorado sua testa rosada e abraçar em aconchego o seu corpo franzino, já lhe faço uma coroa. Todos os dias fio uma volta: hoje é carinho. Ontem, felicidade. Amanhã, começo a enfeitar o alto da cabeça com as nuvens mais fofas - azulbebê. Arthur vem chegando com todas as flores e cores do mundo. E sorte. Muita sorte de conhecer o amor, antes mesmo de receber o primeiro sorriso. Porque eu amo tanto, que não cabe em mim a felicidade de conceber o meu primeiro sobrinho. Arthur é meu rei, de pernas cruzadas, nadando gostoso no quentinho do ventre. Ele é mais uma estrela dessa constelação que faz minha vida brilhar todos os dias. E meu peito ansiar fevereiro - já é carnaval aqui dentro.

Sylvia Araujo

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Oceano em brasa


Aquele mar aberto
no fundo dos olhos.
Aquele sem fim inteiro,
flamejante.
Aquele sempre
aquele nunca
 aquilo tudo escondido
e entregue.
Aquele verdeazulado que grita
sem dizer uma única palavra.
Aquilo tudo em mim:
um nada-tanto tatuado
a ferro quente
no corpo em brasa.



Sylvia Araujo