Foto do blog: Mario Lamoglia

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

José Saramago

"As palavras são assim, disfarçam muito, vão-se juntando umas com as outras, parece que não sabem bem aonde querem ir, e de repente, por causa de duas ou três, ou quatro que de repente saem, simples em si mesmas, um pronome pessoal, um advérbio, um verbo, um adjectivo, e aí temos a comoção a subir irresistível à superfície da pele e dos olhos, a estalar a compostura dos sentimentos (...)"

terça-feira, 25 de agosto de 2009

Magia

Suas mãos se assemelham a cansadas cordas de aço entrelaçadas. Quase sempre imóveis, só é possível vislumbrar as palmas - queimadas pelo calor das pedras - quando se rendem ao mímico diálogo com os pássaros pretos. Gestos ventados ao ar, os dedos desenham incompreensíveis contornos pouco acima da linha do horizonte, enquanto a boca seca cala.
Ela também é alada.

Seus cabelos, derramados ombros abaixo feito cachoeira prateada, têm como preocupação apenas seguir a inconstância do vento. Por vezes se embolam com as correntes ao longe e, de liso, mimetiza em intermináveis vagas rebeldes. Eles vêm e vão, redemoinham e adormecem conforme a maré. Fios revoltos, não se distingue onde começa e termina seu corpo enquanto flutua.
Ela também é partida.

Sua pele é um conglomerado impreciso de retalhos que misturam rugas e cores aleatórias e marcadas. O corpo é delgado e frágil, e os ossos pontudos revelam por baixo do tecido duro e surrado uma silhueta friamente geométrica. Em postura triangular, mantém a espinha ereta e as pernas cruzadas - as rachadas plantas dos pés para cima. Com a cabeça voltada para o norte, tem os olhos sempre encobertos de névoa, mesmo nos tempos mais quentes, enquanto evapora.
Ela também tem segredos.

Sua vida segue sem que jamais tenha tentado transformar pura magia em meras palavras. Em seu mundo, letras são míseros rabiscos frente a imensidão gloriosa dos sentimentos que vibram. Ela não fala. Ela não escreve. Enquanto muitos a definem louca por inacessíveis e degradantes sinônimos, ela enxerga o vento e o beija.
Ela está muito além.
Sylvia Araujo

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Adiante

Abriu um vinho. Tinto e seco. De shorts e meias, colocou no aparelho de som a inconfundível trilha íntima das noites vazias, enquanto o líquido encorpado suspirava - sutil - dentro da garrafa esverdeada.
Quando as primeiras notas começaram a escorregar pelos ouvidos, se enrodilhou no sofá puído de terceira mão, com as duas pernas dobradas por debaixo do corpo franzino. No mesmo canto de sempre - segurando o cachimbo amarelado e mordido, com o zelo próprio de quem se fez confidente - levou ao nariz a taça bordeaux pela metade.
Inspirou os aromas harmoniosos com a suavidade de quem está habituado a reter em si o que há de melhor nas coisas, e em um curto gole permitiu que aquela elegante maciez - rica e aveludada - inundasse a língua e envolvesse o corpo num prazer único e deliciosamente aconchegante.
Preencheu então as próximas horas com seus poucos pequenos prazeres, e se alimentou da sensação etérea de estar na melhor companhia. Sorriu um sorriso branco simplesmente por compreender, enfim, que acariciar sua própria alma era o bendito-santo-remédio pra tanto sofrimento sem laço. O nó se desfez. Pelo vinho, pelo fumo, pelo fundo do poço que desenredou em si mesmo, se fez abraço.
Nesse dia ele estava só. Mas apenas porque aprendeu a desfrutar da felicidade sublime de se perceber assim, sem ser dilacerado pela brutal e desumana solidão dos seus dias de morto.
Ele estava só.
Mas estava inteiro.
Sylvia Araujo